'Há 90 dias luto contra o coronavírus': meses após primeiros sintomas, pacientes não estão curados
Os casos vêm chamando a atenção da comunidade médica e científica na Europa. Pacientes que apresentaram os primeiros sintomas do coronavírus em fevereiro ou março travam uma luta diária contra a doença e relatam sintomas durante semanas e até meses. Estudos vêm sendo realizados na França e no Reino Unido para tentar desvendar porque algumas pessoas teriam maiores dificuldades para se curar da covid-19.
"Hoje é o aniversário da minha contaminação. Há 90 dias luto contra o coronavírus", conta à RFI a naturopata francesa Marion Thélier.
No final de fevereiro, um dos três filhos voltou doente de uma viagem de férias escolares e, logo depois, ela apresentou os primeiros indícios da doença: tosse e febre. "Após alguns dias, percebi que não era como uma gripe, era diferente. A gente sente que é algo que nunca teve antes. Comecei a me isolar e permaneci em repouso, mas a doença foi direto para os pulmões e depois chegaram todos os outros sintomas", relembra.
A naturopata chegou a ser hospitalizada em março, mas voltou para casa devido à superlotação dos hospitais. Realizou várias consultas com seu médico de família e, no desespero, chegou a apostar em um cocktail similar ao utilizado pelo infectologista francês Didier Raoult, em Marselha, conjugando o antibiótico azitromicina a um medicamento natural antimalária. Também se apoiou em aromaterapias e outros remédios naturais. Mas, até o momento, nada pareceu ser suficientemente eficaz.
"A doença degenerou a um ponto que cheguei a temer por minha vida. Tive muita dificuldades para respirar, dores pulmonares, musculares. Há poucos dias ainda tive taquicardia, continuo sentindo dor na altura dos rins... No começo, fiquei na cama durante quatro semanas porque não conseguia me levantar. Agora me sinto um pouco melhor, apesar da falta de ar e do cansaço permanentes. Meu médico não sabe me dizer até quando isso vai durar e me preocupo principalmente com possíveis sequelas da doença", afirma.
Relatos se multiplicam nas redes sociais
Diante da falta de explicações médicas até o momento sobre o fenômeno, Marion criou um grupo no Facebook. Como ela, dezenas de pessoas relatam a dificuldade de melhorar dentro do tempo estimado pelos especialistas, normalmente entre sete a 14 dias. Nas redes sociais, nas últimas semanas, multiplicam-se publicações de doentes acompanhadas das hashtags #apresj30 (depois de 30 dias) #apresj50 (depois de 50 dias) e #apresj60 (depois de 60 dias).
A cuidadora Ophélie, de 25 anos, se aproxima da marca dos 60 dias. Os primeiros indícios da doença começaram no final de março e o diagnóstico positivo chegou no dia 2 de abril. À RFI, ela relatou todos os sintomas da covid-19, como febre, forte dor de cabeça, perda do paladar e do olfato e exaustão, durante várias semanas.
"Precisei de quase duas semanas e meia para que o cansaço diminuísse um pouco. A taquicardia, dores de cabeça e dores musculares continuaram me acompanhando durante mais de vinte dias. Os problemas digestivos permaneceram durante todo esse período. Comecei a recuperar o paladar e o olfato entre o 15° e 20° dia. No início de maio, passei cinco dias sem febre. Retornei ao trabalho em 9 de maio, mas me senti extremamente cansada, voltei a ter taquicardia e a febre reapareceu. Desde esse dia, não houve uma grande melhora", conta Ophélie.
Nesta semana, a cuidadora diz que registra em média dois picos de febre por dia, a exaustão continua e algumas dores reaparecem. Ela também diz perceber que o paladar e o olfato às vezes falham. "Mas é sobretudo uma sensação de opressão no tórax que é permanente, além de taquicardia e, às vezes, uma impressão de ter um vidro na garganta. Estou longe de estar bem e isso é realmente difícil psicologicamente, especialmente para uma pessoa esportiva como eu", reitera.
Pesquisas em andamento
Até o momento, poucas pesquisas investigam o caso de pacientes com sintomas de longa duração. No Reino Unido, um balanço do King's College de Londres aponta que um pequeno, mas significante número de pessoas contaminadas pela doença tenha apresentado indícios durante no mínimo seis semanas.
Tim Spector, um dos cientistas que participaram da criação do aplicativo covid-19 tracker app, utilizado atualmente por cerca de 4 milhões britânicos e americanos, afirmou ao jornal The Guardian que cerca de 200 mil usuários relatam um formato mais longo da doença. "Essas pessoas estão voltando a trabalhar e não estão em sua melhor forma. Tem todo um outro lado do vírus que não ganha atenção por causa da ideia que 'se você não morreu, está bem", diz.
Na França, a infectologista Dominique Salmon-Ceron, do hospital Hôtel-Dieu, em Paris, anunciou na última sexta-feira (22) o lançamento de dois estudos para avaliar a persistência e o ressurgimento de sintomas em pacientes contaminados pelo coronavírus. A primeira pesquisa, coordenada pelo centro hopitalar André Grégoire, em Montreuil, se concentra na oscilação da intensidade dos sintomas durante semanas.
"Acredito que o cansaço pode durar mais de um mês, devido à opressão toráxica - essa sensação de peso no peito - além da anosmia, ou seja, a perda do olfato. Ela começa a se retrair dentro de um período de cinco a dez dias, mas vemos que, em alguns pacientes, mesmo aqueles que desenvolveram formas benignas da doença, esse sintoma pode persistir durante várias semanas", afirmou a infectologista em entrevista ao jornal Le Parisien.
A especialista também indica que um outro estudo tenta entender a volta dos sintomas em alguns pacientes que acreditavam que já estavam curados. O objetivo é compreender se essas pessoas sofriam de outras doenças ou se tiveram "uma má resposta imunitária" ao coronavírus. No entanto, Dominique Salmon-Ceron se recusa a considerar a hipótese que o coronavírus possa se tornar uma patologia crônica.
"Eu diria que trata-se de uma infecção subaguda, ou seja, que ela permanece durante várias semanas. Várias publicações mostram uma carga viral perseverante entre 14 e 21 dias. No entanto, a mais longa registrada, atualmente, é de 63 dias", afirmou ao Le Parisien.
Cedo para conclusões sobre a covid-19
A infectologista brasileira Otília Lupi, do Laboratório de Doenças Febris Agudas da Fiocruz, ressalta que é cedo para se tirar todas as conclusões sobre a doença. "Esse novo fenômeno ainda não tem nome, porque ainda não deu tempo para descrever fadiga crônica, meses de sintomas, como acontece em muitas infecções virais", afirma, em entrevista à RFI.
Segundo ela, a duração dos sintomas pode estar relacionada ao grau de inflamação do organismo para controlar a doença. "Mas isso tem a ver com a lesão induzida pela cura e não é específico ao coronavírus. Vemos esse fenômeno também com hepatite B, citomegalovírus e mononucleose, que são doenças virais. Então, eu não me espantaria que o mesmo acontecesse com o coronavírus", explica.
A especialista ressalta, no entanto, que essa situação não é verificada em todos os infectados pela covid-19. "Isso acontece com pessoas que já têm uma tendência à uma hiper-reatividade e nas quais essa inflamação que leva à cura seja tão grande que o organismo vai demorar mais a melhorar. Quando a gente mobiliza uma resposta imune, aquelas células que foram criadas para gerar a resposta, ela pode ter uma vida de três meses. Esse é o tempo normal que esperamos ter a repercussão de qualquer inflamação", reitera.
Outra possibilidade, segundo Otília Lupi, é que outra patologia tenha sido registrada no mesmo momento da contaminação pelo vírus. "Essa seria outra situação, quando a pessoa tem uma infecção secundária junto da infecção viral, como uma pneumonia, por exemplo. Neste caso, ela vai ter um tecido lesado duas vezes e a recuperação vai ser proporcional à gravidade da segunda lesão. Ou seja, pode haver pacientes que relatam sintomas há dois meses porque tiveram uma doença viral seguida de doença bacteriana", considera.
Sobre a hipótese de pacientes terem sido contaminados mais de uma vez pelo coronavírus, a infectologista lembra que mesmo as pessoas que voltaram a testar positivo à doença depois de curadas tiveram esse resultado porque o diagnóstico considerou "a excreção do resto do vírus que permaneceu no organismo". "Sabemos que uma vez curada a doença, de ter sido gerada a resposta imune, com a produção de anticorpos neutralizantes, o paciente está protegido de uma nova infecção", afirma.
Um estudo divulgado na terça-feira (26) pelo Instituto Pasteur e pelo Hospital Universitário de Estrasburgo, no nordeste da França, confirma a constatação da infectologista brasileira. Segundo a pesquisa, coordenada pelo professor Arnaud Fontanet, pacientes mantiveram anticorpos e imunidade contra o coronavírus um mês após terem sido contaminados.
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