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Como é sobreviver em um 'hospital de guerra' na Venezuela

25/11/2016 18h17

Caracas, 25 Nov 2016 (AFP) - Freddy está prostrado há nove meses em um leito do que seus médicos denominam como um "hospital de guerra" em Caracas. Ele teve uma perna fraturada em quatro partes reconstituída, mas uma infecção adquirida ali pode levar a uma amputação.

No hospital público de Coche, uma comunidade populosa da capital venezuelana, a crise médica do país se exibe com dramaticidade. Só há água três dias por semana, o cheiro é ruim, as latas de lixo permanecem abertas e as moscas voam pelos corredores. Um dos três centros cirúrgicos está fechado por causa da contaminação.

"Tenho medo, não quero mais subir para o centro cirúrgico porque a cada vez volto pior", confessa Freddy Herrera, sentado na cama de uma sala de teto úmido, que compartilha com outros 14 pacientes.

Ele fraturou a perna direita em um acidente de moto e precisou esperar 17 dias para ser operado. Mas por causa das bactérias, que proliferam na sujeira e resistem aos poucos antibióticos disponíveis, precisou passar por 13 limpezas cirúrgicas.

"Meu medo é que depois de tanto lutar venham me dizer que precisam tirar a minha perna porque as bactérias comeram o osso", diz este ferreiro de 41 anos.

Freddy não é o único, segundo o doutor Efraim Vegas, residente em traumatologia. "Temos pessoas que acabaram sendo amputadas por falta de assepsia nos centros cirúrgicos".

Em Coche, os tubos dos respiradores são reutilizados. Vários esperam para ser lavados junto de um bisturi elétrico descartável. Há 18 médicos e a demanda é pelo triplo.

"Ajudo a morrer"A situação se repete em muitos dos 320 centros médicos públicos do país, mergulhado em uma crise econômica, agravada pela queda nos preços do petróleo, praticamente sua única fonte de renda.

Vegas viu morrer, contorcendo-se de dor, um jovem com um tiro de escopeta no joelho. "Não havia soro, hemoderivados, sangue, nem morfina", lembra o médico, que em dois anos presenciou outras mortes por falta de insumos básicos.

Na emergência, há apenas cinco soluções endovenosas para o plantão noturno, o necessário para estabilizar um único baleado, quando podem chegar até 20 pacientes. "Sinto-me de mãos atadas (...), não posso curar. Alivio e ajudo a morrer", conta.

O hospital de Coche atende uma região onde vivem 150.000 pessoas, muitas de bairros onde as autoridades executam desde 2015 operações especiais contra uma criminalidade crescente.

Devido à falta de espaço nos necrotérios, os corpos dos executados são deixados no do hospital, que chega a abrigar até uma dúzia, embora só tenha espaço para quatro, conta Vegas.

"Os corpos às vezes ficam aí 72 horas e explodem. É terrível porque tudo cheira a putrefação. É um hospital de guerra", conta o jovem médico, de 29 anos. Enquanto isso, gotas de sangue fresca são vistas na entrada do depósito.

Elevador do medoSegundo o Observatório Venezuelano da Saúde, a escassez de material cirúrgico afeta 81% dos serviços hospitalares, e a de remédios para os pacientes, a 76%. Só 15.230 leitos estão operacionais (34,8% do total), enquanto seriam necessários cem mil.

A AFP pediu há uma semana uma entrevista com a ministra da Saúde, ainda sem resposta. O governo de Nicolás Maduro afirma que as falhas são pontuais e estão sendo solucionadas.

Sustenta que no modelo petroleiro, importavam-se 90% do material cirúrgico, razão pela qual busca estimular sua produção e a de remédios.

Segundo o governo, a "revolução" socialista investiu 250 bilhões de dólares em saúde nos últimos treze anos, especialmente em um programa de atenção primária que envia médicos - muitos deles cubanos - a zonas populares.

Embora os investimentos tenham chegado ao Coche, muitos equipamentos não servem devido à falta de peças de reposição. Na pediatria, quase fechada por falta de pessoal, há uma incubadora e camas novas cobertas de poeira.

E se o centro cirúrgico apavora Freddy, o único dos quatro velhos elevadores que ainda funciona põe todos em risco.

"Por aqui sobe a comida, os pacientes, quem morreu, os baleados, o lixo, os dejetos biológicos", diz a ascensorista Rosa Herrera, de 61 anos, que se queixa dos mosquitos que se criam no poço inundado do elevador.

"Um ato de heroísmo"Sem infectologista, os médicos identificam as bactérias pelo cheiro do pus, conta um deles - sob a condição de ter a identidade preservada -, que ajudou a salvar um homem trazido com a cabeça infestada de vermes após levar um tiro em um assalto e ser abandonado na rua.

Os médicos precisam se esquivar, ainda, de roubos e agressões de pacientes e familiares, enumera Vegas. "Ser médico na Venezuela é um ato de heroísmo", acrescenta seu colega.

Vegas recebe o equivalente a 60 dólares mensais e diz ter perdido 26 quilos porque o que recebe só dá para se alimentar duas vezes por dia. Possivelmente deixará o país, como outros 13 mil médicos durante a era chavista, segundo a Federação Médica do país. Na Venezuela há 70.000.

Enquanto se recupera, Freddy mata o tempo derrubando moscas com uma raquete de plástico. Para piorar, agora receberá menos visitas: sua esposa está com câncer e começou o tratamento de quimioterapia.