Relatório contra tortura aponta revista vexatória a jovens infratores no país
Os peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) - órgão do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - identificaram que jovens têm sido submetidos a revista vexatória em unidades socioeducativas. A maioria tem pouco ou quase nenhum contato com a família durante o período em que cumprem medidas. Os motivos são vários. Para os especialistas, isso mostra uma articulação "bastante falha" entre as instituições e a comunidade e reflete que a presença das famílias é evitada nas unidades. Em todas as unidades visitadas, os peritos também verificaram que os jovens são submetidos a revista vexatória. Contato com a família Na visão dos peritos, o distanciamento dos adolescentes da família e da comunidade ocorre de diversas formas, entre elas, a grande distância entre a unidade e o centro das cidades, as péssimas condições das vias que dão acesso à unidade, a ausência de transporte público, determinação de visita em dia e horário limitantes, restrição do número de visitantes e internação de jovens em municípios distintos daquele onde vive a família. A informação faz parte do Relatório Anual 2016/2017, divulgado hoje (26), no Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, pelo MNPCT, composto por 11 peritos independentes. Revista vexatória a visitantes O documento apontou que em todas as unidades socioeducativas visitadas a revista vexatória era imposta aos adolescentes e aos visitantes, incluindo idosos e bebês. "A revista vexatória, de maneira geral, consistia em desnudamento, agachamento, procedimentos de contração dos órgãos genitais e utilização de instrumentos como espelhos. Este procedimento altamente violador, além de restringir e determinar condições humilhantes à presença das visitas na unidade, impõe sofrimento aos (às) adolescentes privados (as) de liberdade", revela o documento, apontando que também há limitação na realização de ligações telefônicas e revisão por agentes socioeducativos de toda a correspondência. Os peritos observaram ainda as condições de presídios masculino e feminino, de instituições de longa permanência para idosos e de unidades psiquiátricas no Distrito Federal, no Pará, em Pernambuco, na Paraíba, em Rondônia e no Mato Grosso Sul, visitando 24 unidades. Após constatarem violações, elaboraram relatórios com recomendações aos órgãos competentes, que poderão usar os dados para adotar as devidas providências. Papuda A Penitenciária do Distrito Federal (PDF 1), no Complexo da Papuda, foi um dos locais em que os peritos encontraram superlotação. Com capacidade para 1.584 presos, a unidade tinha lotação de 3.329. Foram avaliados a infraestrutura e insumos básicos, os aspectos institucionais, pessoal, atendimentos de saúde, contato com o mundo exterior, atividades de educação e de trabalho, uso da força e controle externo. "No que diz respeito à infraestrutura, as celas se encontravam superlotadas e visivelmente inabitáveis. Agrava-se à superlotação a insalubridade, tendo em vista a falta de arejamento nas celas, uma vez que os tetos são bastante baixos e a corrente de ar circula apenas por um dos lados do cômodo, onde há grades", apontou o relatório. Os peritos verificaram ainda uso excessivo da força na unidade. "O MNPCT obteve vários relatos da entrada da Diretoria Penitenciária de Operações Especiais ( DPOE) com uso desproporcional da força." Complexo de Curado A equipe do Mecanismo Nacional visitou os presídios Juiz Antônio Luís Lins de Barros (PJALLB), Frei Damião de Bozzano (PFDB) e Aspirante Marcelo Francisco de Araújo (PAMFA), no Complexo do Curado, em Pernambuco. Lá, verificaram que "presos vivem em condições altamente degradantes. Certos pavilhões que deveriam abrigar 50 pessoas chegam a comportar mais do que o triplo de sua capacidade. Em alguns pavilhões, não há mais celas, tendo sido estabelecidos 'barracos' improvisados, sem nenhum critério de segurança e sem qualquer apoio ou intervenção do Estado." Para a secretária especial de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, um dos fatores que causam a superlotação é a cultura de encarceramento no país. "No Brasil, além da pena de privação de liberdade, temos outras penas alternativas. O que nós observamos é a cultura do encarceramento em massa, em que estas penas são aplicadas a privação de liberdade de forma exagerada. Nós temos esta situação de quase 600 mil pessoas encarceradas. Somos a quarta população carcerária do mundo, só perdendo para Rússia, China e Estados Unidos", disse em entrevista à Agência Brasil. Preso "representante" Outra constatação, que causou preocupação aos peritos, foi a atuação do preso "representante", que anteriormente era chamado de chaveiro e do preso "assistente", que segundo o relatório, são internos designados pela direção da unidade, com a anuência dos outros presos, para atuar em espaços onde os agentes penitenciários não entram. "Cada um dos pavilhões ou blocos apresenta um chaveiro e seus respectivos assistentes. Tais presos, entre outras ações, estipulam as regras de convivência, dialogam com a equipe técnica e administrativa da unidade, encaminham os internos para os serviços de saúde e mediam conflitos entre os presos. Neste contexto, são criadas regras de conduta bastante rigorosas que, se os detentos não as respeitarem, há um grande risco de represálias. Não são raras as situações de violência, fazendo parte do cotidiano do Complexo do Curado casos de presos envolvidos em brigas com facas e outros tipos de agressões físicas. Inclusive, há relatos de detentos em posse de armas de fogo", diz o documento. Instituições psiquiátricas Nas instituições psiquiátricas, MNPCT fez cinco visitas, uma delas destinada ao público feminino, duas para tratamento exclusivo de homens e as outras abrigam homens e mulheres. Também houve a constatação de superlotação. Flávia Piovesan destacou que quando há vulnerabilidade e privação de liberdade juntos, como nesses casos, é preciso ter atenção e acompanhar o atendimento para evitar a prática de tortura. "Evitar que haja situações de dores deliberadas e sofrimentos físicos." No Hospital Geral Penitenciário em Belém, no Pará, antes chamado de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), que atende pessoas com transtorno mental em conflito com a lei com medida de segurança decretada, os peritos anotaram durante a visita que os 96 leitos abrigavam 183 pessoas, a maioria (170) homens. De acordo com o relatório, o ambiente configura aprisionamento "em uma clara violação aos princípios e às determinações da Lei 10.216/2001". "Tal contexto produz intenso sofrimento às pessoas privadas de liberdade, configurando-se como indutor da prática de tortura e maus-tratos, violando, assim, os marcos legais relativos à saúde mental e de garantia da dignidade humana. Portanto, as condições de aprisionamento observadas atestam a já comprovada inadequação do modelo prisional para o tratamento de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, devendo esta população ser redirecionada para o modelo de medida terapêutica a ser executada pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)", diz o MNPCT. Quanto à situação jurídica, 93 pessoas estão em internação provisória, sendo nove mulheres, 53 já sentenciadas em sua medida de segurança e cinco pessoas com a medida já extinta, mas que ainda permanecem internadas. Órgãos Periciais Oito órgãos periciais foram visitados no período de 2016 a março de 2017 no Distrito Federal, no Pará, em Rondônia, na Paraíba, no Amazonas, em Santa Catarina, em Roraima e no Rio Grande do Norte. A intenção, de acordo com o MNPCT, é conhecer as estruturas, os procedimentos e corpo de funcionários buscando compreender como os mesmos atuam em situações que podem ser identificadas como tortura em pessoas privadas de liberdade. Na visão da secretária especial de Direitos Humanos, os serviços de perícia ainda estão aquém das necessidades para contribuírem com notificações que reflitam a realidade dos casos de tortura. "É fundamental assegurar autonomia e independência. Uma das peritas do Mecanismo, inclusive, dizia da possibilidade de ter um kit mínimo, definir núcleo essencial para uma perícia adequada. Então, esta discussão tem que ser feita no Brasil, sobretudo, a independência das perícias." "Na tortura e nessas violências para ter a robustez da prova e um acervo probatório adequado é fundamental ter uma investigação, identificar os elementos do crime. Há toda uma metodologia para isso. Nós temos que eliminar a possibilidade da tortura", disse. A intenção, conforme a secretária, é adotar protocolos de atendimento com os órgãos de perícia dos estados. "No campo das políticas públicas como não há diagnósticos precisos, não há como formular reformas adequadas. Este é um ponto fundamental, o diagnóstico preciso." Recomendações Como resultado, o relatório fez 394 recomendações, destinadas às autoridades em âmbito administrativo, de gestão, do sistema de justiça e social para a construção de medidas que impeçam os diversos métodos de prática de tortura e maus-tratos que, ainda estão presentes nas instituições de privação de liberdade visitadas. "As recomendações são basicamente providenciais a serem adotadas pelos mais diversos atores implicados na garantia de direitos das pessoas privadas de liberdade, tais como: gestores de políticas públicas (saúde, educação, segurança, assistência social, trabalho); gestores das unidades de privação de liberdades; membros do sistema de justiça e de fiscalização/controle social; diretores de cada unidade visitada. Estas recomendações têm a perspectiva de superar ou diminuir as situações condicionantes que geram oportunidades para aqueles que praticam a tortura e maus-tratos contra pessoas privadas de liberdade, para que possam não só avaliar seus atos, mas também ser responsabilizados por eles." Na avaliação do Mecanismo Nacional, a matriz dos problemas, em geral, é de uma complexidade que exige tanto ação imediata, como medidas coordenadas de forma sistêmica, interinstitucional e intersetorial. "Paradoxalmente o que se apresenta, em geral, é um quadro de fragmentação institucional, compartimentalização e sombreamento de políticas públicas, em paralelo a ausência do Estado no atendimento a serviços sociais essenciais de educação, saúde, segurança alimentar e nutricional e segurança pública nas unidades de privação de liberdade. Prevalecendo um modelo de precarização, omissão ou terceirização desses serviços. Em síntese, pode-se a rmar que nos espaços de privação de liberdade há mais ausência estatal que a presença mínima necessária," completou.
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