HIV: Cientistas relatam 5º caso de remissão sustentada
Mais de quatro décadas após a descoberta da síndrome da imunodeficiência humana (Aids), cada vez mais cientistas compreendem que a cura do vírus causador da doença será individualizada (caso a caso) e múltipla (com associação de terapias). Enquanto isso não é realidade, a prevenção, diagnóstico precoce e o tratamento daqueles que vivem com o HIV são as melhores estratégias para lidar com essa epidemia, dizem.
Conforme explica a Organização Mundial da Saúde (OMS), o alvo do HIV é o sistema imunológico. À medida que o vírus destrói e prejudica a função das células imunes, os indivíduos infectados tornam-se gradualmente imunodeficientes e menos competentes para enfrentar infecções e alguns tipos de câncer.
O estágio mais avançado da infecção pelo HIV é a Aids, definida, pela OMS, como o desenvolvimento de certos tipos de câncer, infecções ou outras manifestações clínicas graves de longo prazo. Atualmente, ela é controlada por regimes de tratamento compostos por uma combinação de medicamentos antirretrovirais (que impedem a replicação/multiplicação do vírus no organismo), que permite que pessoas que vivem com HIV tenham vida longa e saudável.
O paciente de Düsseldorf, como ficou conhecido, se junta aos pacientes de Berlim, Timothy Ray Brown -primeiro a passar por esse tipo de transplante, em 2007, ele morreu de câncer em 2020 -, e de Londres, o venezuelano Adam Castillejo, além de dois outros anunciados no ano passado, embora alguns cientistas avaliem que seja cedo para comemorar o sucesso do tratamento desses de 2022.
Essa palavra "cedo" dá o tom do imbróglio conceitual em considerar um paciente curado do HIV - por isso, assim como nos cânceres, os especialistas preferem tratar como casos de remissão sustentada sem medicamento -, que advém das complexidades e peculiaridades desse vírus.
"No caso do HIV, a partir do momento em que a pessoa se infecta e que um pedacinho do material genético do vírus, o DNA pró-viral, se integra no DNA da célula hospedeira por meio da ação da enzima integrase, acabou, o vírus está grudado ali. Ainda que você zere a carga viral da pessoa por meio de tratamento e que a pessoa fique por 20 anos com a carga viral indetectável, se um dia ela parar de tomar remédio aquele fragmentinho de DNA pró-viral vira vírus e volta a ter replicação", diz o médico infectologista Rico Vasconcelos, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Esse lugar onde o vírus fica escondido e adormecido (em estado de latência) é chamado de reservatório ou santuário. A "verdadeira" cura do HIV, então, precisaria eliminar esses reservatórios, o que parece ter ocorrido nesses cinco casos.
Transplante de medula óssea
O paciente de Düsseldorf, acompanhado há nove anos pelos cientistas, parou de tomar a medição antirretroviral em 2018 e permanece livre do HIV desde então. Mas como isso foi possível? Por meio de um transplante de medula óssea.
O paciente tinha níveis extremamente baixos de HIV, graças à medicação, mas foi diagnosticado com leucemia mielóide aguda e, como outros tratamentos falharam, precisou passar por esse transplante. A grande sacada - e também golpe de sorte - da equipe médica foi encontrar um doador compatível com uma rara mutação (CCR5-delta-32).
"O cromossomo 32 expressa a molécula de CCR5, que existe na superfície das células e é onde o vírus se liga para entrar na célula. Quando (o paciente) recebe uma medula que tem a deleção do 32, esse indivíduo vai substituir as células CD4 dele, as células do sistema imune, por células que não expressam CCR5. O vírus não consegue penetrar", diz José Valdez Ramalho Madruga, coordenador do Comitê de Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia e pesquisador do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP.
Nos cinco anos seguintes ao transplante, a equipe médica continuou a coletar amostras de tecido e sangue do paciente de Düsseldorf. Mas ainda encontrava células imunológicas que reagem especificamente ao HIV, o que sugeria que um reservatório permanecia em algum lugar, além de identificar DNA e RNA do vírus, mas que pareciam não se replicar.
Antes de retirar a medicação do paciente, os pesquisadores realizaram testes em camundongos. Eles transplantaram as células imunológicas do paciente nos animais modificados geneticamente e perceberam que o vírus não conseguiu se replicar.
Restrições
Embora o tratamento pareça promissor, ele não pode ser massificado e escolhido para tratar apenas o HIV. Isso porque, segundo especialistas, é bastante agressivo e tem alta letalidade, além do fato de que encontrar um doador compatível com essa mutação específica não é tarefa fácil.
"O transplante de medula mata em média de 35% a 40% das pessoas. Imagina que você vai pegar uma pessoa que tem uma expectativa de vida normal ou até maior do que quem não tem HIV e pode matar. Você só faz isso na hora que você tem um motivo para fazer", afirma Ricardo Diaz, professor de Infectologia e chefe do Laboratório de Retrovirologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Na literatura médica, inclusive, há relatos de pacientes que foram submetidos a ele, mas não conseguiram se livrar do HIV. "Já foram feitas mais outras dezenas de vezes exatamente o mesmo procedimento com pessoas vivendo com HIV, com alguma neoplasia hematológica", diz Vasconcelos. "Nessas outras dezenas de casos não deu certo. Depois do transplante, quando se procura pelo HIV, encontra-se vírus lá. Nós não podemos dizer assim pronto, encontramos o jeito de curar todo mundo que vive com HIV, mas reforça-se um pouquinho mais a ideia de que é possível curar."
Isso, claro, não tira a alegria do relato de cinco pacientes livres do HIV, que, inclusive, dá gás à pesquisa que tem como alvo a proteína CCR5. "Esses casos sinalizam para a possibilidade desse tratamento genético causando uma modificação nas células e deixando elas livres da CCR5", diz Madruga.
Curas, no plural
Se os antirretrovirais conseguem frear a infecção pelo HIV e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, por que a cura segue tão importante? Primeiro pois nem todos reagem bem aos remédios e, mesmo aqueles que reagem, seguem tendo prejuízos. "A gente trata com o coquetel, mas o HIV continua produzindo algumas proteínas que inflamam um pouco da pessoa, o que favorece o envelhecimento acelerado de todos os órgãos e todos os tecidos", explica Diaz.
Nessa batalha dos pesquisadores contra o vírus, a compreensão de que para livrar os pacientes do HIV será preciso associar diferentes estratégias terapêuticas e considerar a individualidade de cada caso é cada vez mais evidente. "Existem várias barreiras para a gente tentar curar a pessoa. Não adianta você intervir em uma única barreira, porque já não deu certo", resume Diaz.
Os cientistas investigam diversas estratégias, que incluem vacinas terapêuticas, tratamento com anticorpos monoclonais, terapias genéticas e associações de antirretrovirais. Embora haja uma grande incerteza sobre quando, de fato, haverá uma cura escalável, Diaz acha que é uma questão de anos. "Os estudos já estão em andamento. Acho que a gente vai ter uma coisa com potencial escalável, não para aplicar em todo mundo, mas um número maior de pessoas em mais ou menos sete, oito anos."
Prevenção, diagnóstico e tratamento
"Embora a busca pela cura definitiva da infecção pelo HIV seja uma meta muito importante, e que dever ser encorajada, existem recursos e tecnologia, hoje, que podem levar a um fim da epidemia de Aids como ameaça à saúde pública até 2030?, afirma Claudia Velasquez, diretora e representante do Unaids, programa das Nações Unidas (ONU) de combate à Aids e de prevenção do avanço do HIV, no Brasil.
"Existem, hoje, diversas abordagens de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento do HIV que são muito eficazes para controlar a epidemia de Aids mas que, infelizmente, em muitos países ainda não são acessíveis às pessoas em maior vulnerabilidade", completa, em entrevista por e-mail ao Estadão.
São exatamente nesses três pontos (prevenção, diagnóstico e tratamento) que os especialistas destacam que precisamos focar enquanto uma cura escalável não está disponível.
Do ponto de vista da prevenção, embora o ano tenha começado com um revés importante, a descontinuidade do Estudo Mosaico para uma vacina preventiva, existem outras abordagens que, quando combinadas, são efetivas. Como destaques a profilaxia pré-exposição (PrEP) e pós-exposição PEP, além do próprio tratamento - conforme o vírus de torna indetectável, a pessoa também deixa de transmiti-lo.
"O futuro é promissor, e, no momento, a melhor estratégia é prevenir", afirma Madruga.
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