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David Cameron: O primeiro-ministro que perdeu tudo ao apostar contra os eurocéticos

David Cameron anuncia que renunciará após a decisão do referendo - Matt Dunham/AP
David Cameron anuncia que renunciará após a decisão do referendo Imagem: Matt Dunham/AP

Brian Wheeler

24/06/2016 21h10

Independente de qualquer coisa que tenha realizado em seus seis anos no poder, David Cameron será para sempre lembrado como o premiê que tirou a Grã-Bretanha da União Europeia.

Será um estranho epitáfio para a carreira de um líder político que prometeu fazer seu partido parar de reclamar da Europa e provavelmente a última maneira como ele pretendia entrar na história.

Ele liderou os Tories (Partido Conservador) por cerca de 11 anos - sendo superado apenas por Margareth Tatcher, Winston Churchill e Stanley Baldwin em tempo no cargo na era moderna.

Quando entrou na cena política em 2005, vencendo líderes mais conhecidos no partido, queria ser visto como um novo tipo de conservador: jovem, com uma mentalidade liberal, preocupado com o social e, acima de tudo, moderno.

Não haveria lugar no Partido Conservador de Cameron para as discussões venenosas sobre a União Europeia que quase destruíram o partido em gestões de lideranças anteriores.

Pelo contrário, deveria haver uma visão positiva, otimista e inclusiva da Grã-Bretanha. Ele falou em fazer dos Conservadores o partido do NHS (serviço de saúde pública britânico) e da "divisão dos rendimentos do crescimento".

Uma de suas primeiras conquistas foi ser aplaudido por uma plateia conservadora em uma conferência sobre união civil de pessoas do mesmo sexo.

A crise bancária de 2008 o fez mudar de tom: as reformas sociais permaneceram em seu discurso, mas vinham acompanhadas por uma abordagem mais tradicional dos conservadores de balancear as contas públicas por meio de cortes de gastos. Ele sempre se recusou a reconhecer uma contradição entre os dois objetivos, argumentando que o país poderia fazer "mais com menos".

Com um tipo próprio de pragmatismo, ele dizia suspeitar de ideologias e sempre foi capaz de adaptar suas posições a todas as situações.

Foi essa flexibilidade que permitiu a ele formar alianças com opositores: com o líder liberal-democrata Nick Clegg, no primeiro governo de coalizão desde a guerra, e depois quando dividiu plataformas políticas com figuras do Partido Trabalhista na campanha do referendo.

Mas foi essa qualidade que alimentou suspeitas e, no final, até hostilidade total entre colegas de ideologia conservadora mais pura.

Sua origem privilegiada também se tornou fonte de ressentimento para alguns em seu partido - que preferiam líderes empreendedores ao estilo "selfmade" (de esforço próprio) de figuras como Margaret Thatcher e John Major.

Cameron foi o primeiro líder conservador desde os anos de 1960 a frequentar uma das escolas mais caras da Grã-Bretanha, a Eton. Seus ancestrais também remontam ao rei William 4º, o que faz dele um parente distante da rainha Elizabeth 2ª.

Mas ele nunca escondeu seu berço privilegiado e dizia que todos os britânicos deveriam ter as oportunidades que teve.

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Escândalo do Panamá

Sua origem só lhe gerou problemas neste ano, quando seu pai, Ian, foi citado como cliente da Mossack Fonseca, empresa do Panamá que ficou no centro de um escândalo de evasão fiscal.

Cameron teve que divulgar dados de seu imposto de renda - algo que nenhum premiê tinha tido que fazer antes. Os dados mostraram que ele recebeu uma doação de 200 mil libras de sua mãe, fato que críticos acusaram de ser uma tentava de evitar os impostos sobre herança.

Mas ver o nome de seu pai mencionado na mídia foi doloroso para o primeiro-ministro, que sempre falava dele com admiração por seu espírito de luta.

Ian Cameron, que morreu em 2010, nasceu com deformações graves nas pernas - que acabou tendo que amputar. O pai do premiê também perdeu a visão de um olho, mas nunca se considerou "deficiente" e raramente reclamava de alguma coisa.

Cameron disse que teve uma infância feliz, na qual "lamúrias não estavam no menu".

Terceiro filho em uma família de quatro irmãos, ele nasceu em 9 de outubro de 1966 em Londres. Passou os primeiros anos em Kensington e Chelsea (bairros ricos de Londres), antes de sua família se mudar para Newbury, no condado de Berkshire, região central do país.

Aos 7 anos, Cameron foi mandado para a escola preparatória de Heatherdown, por onde já haviam passado membros da família real como os príncipes Edward e Andrew. Em seguida, por causa de tradição familiar, foi para Eton.

Antes de ir estudar Filosofia, Política e Economia em Oxford, ele tirou um ano de folga nos estudos. Nesse período trabalhou para o parlamentar do Partido Conservador Tim Rathbone e passou três meses em Hong Kong, atuando em uma empresa de transporte marítimo.

Retornou para a Grã-Bretanha de trem, cruzando a União Soviética e o leste europeu.

Um de seus professores em Oxford, Vernon Bogdanor, o descreveu como um dos mais hábeis estudantes que já ele ensinou, cujas ideias políticas eram "moderadas e razoavelmente conservadoras".

Após se graduar, Cameron considerou seguir carreira em jornalismo ou no ramo bancário - mais isso antes de ver um anúncio e se candidatar a um emprego na área de pesquisa do Partido Conservador.

O escritório central do partido teria recebido um telefonema na manhã de sua entrevista de emprego, em junho de 1988. Era uma pessoa não identificada do Palácio de Buckingham, que disse: "Eu soube que vocês receberão David Cameron".

"Eu tentei de tudo tentando dissuadi-lo de perder seu tempo com política, mas falhei. Estou telefonando para dizer que vocês estão para conhecer um jovem verdadeiramente notável".Cameron diz que ele não sabia que a ligação no dia da entrevista seria feita ou quem a fez. Mas seus críticos dizem que esse é um dos exemplos de como ele chegou ao poder.

Como pesquisador, Cameron era visto como brilhante e esforçado. Na época, trabalhou na preparação de John Major para sessões no Parlamento e teve contato com George Osborne, que mais tarde se transformou em seu chanceler e aliado político mais próximo.

No Partido Conservador, ele trabalhou também como assessor político até decidir que queria ele mesmo ser um parlamentar.

Mas sabia que tinha que ganhar experiência fora da política. Por isso foi trabalhar no departamento de relações públicas da empresa televisiva Carlton, controladora da ITV.

Em 2001, foi eleito deputado pelo Partido Conservador em Oxfordshire.

Samantha Cameron, sua mulher, também veio de uma família tradicional britânica. Ela foi diretora criativa da loja de artigos de luxo Smythson, na Bond Street - que tinha como clientes Stella McCartney, Kate Moss e Naomi Campbell.

Ela teria colaborado para transformar a imagem do marido.

David e Samantha se conheceram por meio da irmã dele, Clare. Eles se casaram em 1996 - o casal tem três filhos: Nancy, Arthur, e Florence.

Após entrar pela primeira vez no Parlamento, em 2001, Cameron subiu rápido no partido, protegido inicialmente pelo líder dos Conservadores Michael Howard.

Em 2005, se candidatou para suceder Howard na liderança da agremiação política. Era visto na ocasião como alguém que tinha poucas chances de vencer.

Mas ao discursar de improviso durante a campanha - o que se tornaria parte fundamental de seu estilo -, começou a ganhar aliados fiéis no partido.

Uma vez escolhido, provocou receio de muitos em seus primeiros meses de sua liderança. Na época, recebeu críticas por afirmar que jovens infratores só precisavam de amor.

A imprensa, que ansiava por novas histórias durante um governo trabalhista impopular, deu a ele uma grande cobertura - o que ajudou a melhorar a imagem do Partido Conservador.

Isso fez com que ele liderasse as pesquisas de intenção de votos. Mas a crise financeira o forçou a abandonar sua retórica otimista em favor de um discurso mais sóbrio, prevendo cortes de gastos.

Durante a campanha para a eleição geral de 2010, viu sua vantagem sumir com a ascensão do liberal-democrata Nick Clegg.

Após uma eleição concorrida, os Conservadores obtiveram 97 vagas no Parlamento. Isso era uma grande vitória, mas não foi suficiente para formar um governo. Por isso, Cameron teve que procurar Clegg para formar um governo de coalizão.

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Aos 43 anos, Cameron se tornava o mais jovem premiê desde Robert Banks, que governou em 1812.

Seu chanceler George Osborne era ainda mais novo, e os dois governaram como uma equipe - como haviam feito Tony Blair e Gordon Brown, mas sem a rivalidade que existia entre as estrelas do Partido Trabalhista.

Cameron e Osborne se aproximaram tanto que o chanceler passou a ser cotado para substituir o premiê no futuro.

A coalisão com Clegg funcionou melhor do que se esperava. Em cinco anos de governo, foram feitas mudanças no sistema educacional, na saúde e na previdência, entre muitas outras áreas.

Mas Clegg e seu partido perderam apoio devido a políticas pouco populares da coalizão, como a de cortes sucessivos nos gastos públicos e a de aumento de taxas nas universidades.

Já Cameron cresceu nas pesquisas e ganhou respeito por ter adotado postura de estadista sempre que foi necessário.

Para a surpresa de muitos, a maior dificuldade de Cameron não foi lidar com a coalizão com os liberais-democratas, mas sim manter o controle sobre a extrema-direita de seu próprio partido, que criticava a aliança com Clegg e pregava a realização de um referendo sobre a permanência na União Europeia.

Em agosto de 2013, ele sofreu um golpe em sua autoridade ao se tornar o primeiro premiê em 100 anos a perder uma votação sobre política externa. Parlamentares do Partido Conservador se uniram com o Partido Trabalhista para bloquear os planos para uma intervenção militar na Síria.

Outra crise de seu governo ocorreu durante o referendo sobre a independência da Escócia. Em setembro de 2014, ele teve que cancelar uma sessão no Parlamento para correr de última hora até a fronteira e fazer campanha pela permanência do país no bloco.

Para alguns, o jeito como Cameron lidou com o referendo da Escócia, fazendo concessões para os nacionalistas, deu a ideia de que ele só se dedica totalmente a um assunto quando tudo parece perdido.

O premiê concordou na época com o referendo por pensar que acabaria de uma vez por todas com a questão da independência escocesa - a mesma lógica que o fez prometer em janeiro de 2013 que faria um referendo sobre a permanência ou não na União Europeia.

As duas decisões, de maneiras diferentes, provariam ser equívocos espetaculares.

Quando ele fez a promessa do referendo sobre a União Europeia, os Conservadores estavam perdendo terreno para o UKIP, o Partido da Independência do Reino Unido.

A saída da União Europeia não teria sido uma grande questão na eleição geral de 2015 se Cameron não tivesse prometido fazer um referendo. No fim, o partido UKIP só obteve um assento no Parlamento.

Segundo analistas, o maior impacto na campanha foi causado pelos avisos dados pelo premiê aos eleitores de que a economia estaria em risco se o Partido Trabalhista vencesse o pleito. Críticos disseram que ele estava fazendo uma campanha baseada no medo.

As pesquisas eleitorais sugeriram na época que o Parlamento ficaria dividido, mas Cameron provou que as estimativas estavam erradas e obteve maioria - formando um governo do Partido Conservador, algo que não acontecia desde John Major, em 1992.

Ele então agiu rápido para explorar a confusão que o resultado causou no Partido Trabalhista.

Após a eleição do desconhecido Jeremy Corbyn como líder do partido opositor, Cameron tentou posicionar os Conservadores como moderados e identificar seu partido com a classe dos trabalhadores - visando assegurar um governo de seu grupo por mais uma geração.

Mas o cenário político mudou quando o governo começou a sofrer uma série de derrotas nas mãos de seus apoiadores - especialmente em relação ao plano do chanceler George Osborne de cortar benefícios para deficientes.

E a decisão de Cameron de fazer o referendo o lançou em uma rodada de negociações diplomáticas com líderes europeus para tentar um acordo para manter a Grã-Bretanha na União Europeia.

Ele se colocou na linha de frente das negociações e da campanha que se seguiu. Até se referia ao processo como "meu referendo". Mas o acordo que conseguiu não correspondeu às promessas que ele havia feito, especialmente em relação à movimentação de pessoas.

Ele insistiu que as promessas de restrição de pagamentos relacionados a benefícios de bem-estar social que obteve de líderes europeus ajudariam a controlar a imigração.

Foi então o homem que havia dito que não descartava nenhuma hipótese se não conseguisse obter o que queria de Bruxelas se transformou em um advogado apaixonado da permanência da Grã-Bretanha na União Europeia.

Essa foi uma mudança profunda demais para muitos em seu partido - a maioria queria a saída britânica da União Europeia.

Assim, ele foi obrigado a deixar que cada membro do partido apoiasse o lado que desejasse no referendo - mesmo que a posição oficial do governo fosse pela permanência.

Isso fez com que a campanha desencadeasse uma "guerra" nas fileiras de seu partido. O ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, e um dos aliados mais próximos de Cameron, o ministro da Justiça, Michael Grove, fizeram campanha para a saída do bloco.

A promessa do premiê de permanecer no cargo independente do resultado do referendo também se provou uma esperança vã.

Ele conseguiu mudar o Partido Conservador em muitos aspectos, elegendo mais mulheres e representantes de minorias. Também fortaleceu o partido, que em 2005 se encontrava em uma posição de desesperança.

Mas nunca conseguiu ganhar a poderosa ala mais à direita do Partido Conservador, que sempre desconfiou de sua abordagem liberal e o que entendia seu estilo de governo como elitista e aristocrata.

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Cameron em suas próprias palavras

"Sou uma pessoa prática e pragmática. Sei onde quero chegar, mas não estou ideologicamente atado a nenhum método" - dezembro de 2005.

"Eu não apoio o casamento gay apesar de ser um conservador. Eu apoio o casamento gay porque eu sou um conservador" - julho de 2013.

"Espero que digam que eu sou um otimista, gosto da vida e sou divertido. Mas também quero que digam que faço o que acredito" - fevereiro de 2015.

"Governaremos como um partido de uma nação, um Reino Unido. Isso significa que a recuperação deve atingir todas as partes do país, de norte a sul e de leste a oeste" - maio de 2015.

O que dizem os outros

"Como a maioria dos ingleses, ele não era de falar fácil e abertamente no estilo coração aberto como o da (apresentadora americana) Oprah, como alguns fazem, mas é uma ótima companhia" - seu colega Michael Gove, em 2010.

"Em tempos bons ou ruins, ele é o parceiro que você quer ao seu lado. Eu confio nele. Ele fala o que faz e faz o que fala" - Barack Obama, presidente dos Estados Unidos.

Vida pessoal

Música: Bob Dylan e rock indie rock como The Killers, The Smiths, Radiohead e Pulp

Filmes: Lawrence da Arabia, O Poderoso Chefão

TV: Game of Thrones, Breaking Bad, The Killing

Lazer: Karaoke, jogos de computador

Esportes: Tênis, bilhar, corrida, assisitir a jogos de cricket. Ele torce para o fime de futebol Aston Villa