Por que os EUA decidiram deixar de usar prisões privadas
Depois de uma análise detalhada sobre condições de segurança e custos, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos anunciou na semana passada que pretende deixar de usar prisões privadas para abrigar presos sob custódia federal, em uma decisão que encerra décadas de parceria e, segundo analistas, sinaliza uma mudança histórica de postura do governo americano.
"As prisões privadas tiveram papel importante durante um período difícil, mas o tempo mostrou que têm desempenho inferior se comparadas às nossas instalações (administradas pelo governo)", disse a subsecretária de Justiça, Sally Yates, em memorando.
"Não oferecem o mesmo nível de serviços correcionais, programas e recursos, não apresentam redução significativa de custos e não mantêm o mesmo nível de segurança e proteção."
A medida atinge apenas uma pequena fração da população carcerária do país, já que somente 12% dos presos federais estão em estabelecimentos administrados por empresas, e a maioria das prisões privadas são estaduais ou locais e não serão afetadas pela mudança.
"Apesar disso, é uma importante medida simbólica e poderá contribuir com o atual debate sobre encarceramento em massa", disse à BBC Brasil o especialista em justiça criminal Marc Mauer, diretor-executivo do Sentencing Project, grupo que defende reformas no sistema de justiça criminal americano.
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"O sistema de prisões privadas nos Estados Unidos cresceu tremendamente desde seu início, nos anos 1980. Este é o primeiro revés significativo em 30 anos", observa Mauer.
Agressões e contrabando
A decisão foi anunciada após a divulgação de um relatório do Office of Inspector General (divisão de fiscalização do Departamento de Justiça) que analisou como as prisões privadas são fiscalizadas, se cumprem determinados padrões de segurança e como se comparam em relação às instalações operadas pelo governo federal.
O relatório concluiu que é preciso melhorar a fiscalização e revelou que as prisões privadas registram mais casos de agressões, contrabando e motins, além de oferecerem menos serviços de reabilitação, como programas educacionais e de treinamento profissional.
O documento cita motins provocados pela má qualidade da comida e de atendimento médico e incidentes nos últimos anos que "resultaram em amplos danos a propriedade, ferimentos e a morte de um agente penitenciário".
A mudança será gradual. O Departamento de Justiça instruiu sua agência responsável pela administração do sistema federal de prisões, o Bureau of Prisons, a não renovar os contratos com empresas privadas que começarem a vencer ou, nos casos em que ainda seja necessária renovação, reduzir "substancialmente" o número de leitos previstos.
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A decisão deve ser facilitada pela redução da população carcerária federal que, segundo Yates, depois de crescer cerca de 800% entre 1980 e 2013 - o que levou o governo a recorrer a prisões privadas para aliviar a superlotação -, começou a declinar.
O número de presos em unidades federais caiu de 220 mil em 2013 para menos de 195 mil atualmente - uma pequena parcela da população carcerária total nos Estados Unidos, de cerca de 2,2 milhões de pessoas, incluídas prisões estaduais e locais.
Dos 195 mil presos federais, cerca de 22 mil estão em 13 prisões privadas, localizadas nos Estados de Novo México, Oklahoma, Texas, Califórnia, Carolina do Norte, Georgia e Mississippi. Yates espera reduzir esse número para cerca de 14 mil até maio do ano que vem.
Reações
As três empresas que operam essas prisões privadas - Corrections Corporation of America (CCA), GEO Group e Management and Training Corporation (MTC) - se disseram "decepcionadas" e criticaram as conclusões do relatório e a decisão do Departamento de Justiça.
"Se fosse baseada somente no declínio da população carcerária, poderia haver alguma justificativa. Mas basear esta decisão em custos, segurança e oferta de programas é errado. Os fatos não sustentam essas alegações", diz a MTC em nota, ressaltando que as prisões privadas abrigam uma população carcerária mais homogênea, o que levaria a maior ação de gangues e, por isso, mais incidentes.
Segundo especialistas, porém, os problemas apontados no relatório não são novos. "Esses problemas já foram identificados há mais de 20 anos", afirma Mauer.
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Para ele, o que mudou foi o ambiente político no país e o debate sobre justiça criminal. "Agora temos tanto liberais quanto conservadores defendendo reformas e redução da população carcerária. As lideranças políticas se sentem mais confortáveis em examinar o sistema e descrever seus problemas", salienta.
De acordo com o especialista em justiça criminal Martin Horn, professor do John Jay College of Criminal Justice e ex-chefe do departamento de correções e liberdade provisória da cidade de Nova York, há nos Estados Unidos uma crescente objeção filosófica ao conceito de prisões privadas.
"As pessoas sentem que a administração de Justiça, punição e segurança pública não deve ser algo sujeito a controle privado. E que é um modelo inerentemente falho, devido à motivação dos operadores de lucrar", disse Horn à BBC Brasil.
Histórico
Os Estados Unidos começaram a utilizar prisões privadas nos anos 1980, quando sentenças duras eram a resposta a uma onda de criminalidade no país, em meio à guerra às drogas, e fizeram a população carcerária explodir.
No início, as empresas começaram a operar prisões privadas no nível local e estadual e, a partir de meados da década de 1990, em instalações federais.
"A indústria de prisões privadas começou a se aproximar dos governos e sugerir que poderia encarcerar pessoas a um custo menor e ajudar a combater a superlotação. Mas, ao mesmo tempo, também estavam prometendo a seus acionistas que poderiam gerar lucro", observa Mauer.
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Segundo Mauer, uma das maneiras de cortar custos em uma prisão é pagar salários menores e oferecer menos treinamento aos guardas, o que leva a maior rotatividade e a uma força menos experiente.
"Isso é parte do motivo pelo qual vemos relatos de problemas de segurança", salienta.
Horn ressalta que os problemas não são exclusividade das prisões privadas. "Há muitas prisões públicas que são simplesmente horríveis. E há prisões privadas que são boas", diz.
Segundo Horn, cabe ao governo fiscalizar o cumprimento dos contratos. "Nas situações em que o contrato é bem escrito e a fiscalização é rigorosa, acho que uma prisão privada pode ter bom desempenho, e há exemplos disso nos Estados Unidos e em outros países", afirma.
Brasil
As mesmas empresas que dominam o mercado americano de prisões privadas também têm atuação no exterior, administrando unidades em países como Austrália, África do Sul e Grã-Bretanha.
No Brasil, está em discussão um projeto de lei que prevê a contratação de parceria público-privada para a construção e administração de estabelecimentos penais.
Enquanto defensores afirmam que seria a solução para um sistema carcerário marcado por superlotação, instalações insalubres e ações de facções criminosas, críticos temem que a privatização possa levar a um número ainda maior de presos, sem melhorar condições ou reduzir custos.
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Horn não descarta a ideia de que poderia ser uma oportunidade para melhorar as prisões brasileiras. "Por meio de parceria público-privada, o governo poderia encomendar novas construções utilizando capital privado. E a possibilidade de competição poderia criar incentivo para o sistema público melhorar", afirma.
Para Mauer, muitos dos problemas estruturais das prisões privadas nos Estados Unidos se aplicam a outros países. "É muito difícil gerar economia sem um efeito negativo sobre a segurança", destaca.
Mauer reconhece que prisões públicas também têm problemas. "Mas quando estão sob administração pública, há possibilidade de maior fiscalização, os contribuintes podem fazer cobranças", ressalta.
"Não há nada de errado em o governo trabalhar com o setor privado, mas quando estamos falando de privação de liberdade, me parece perturbador entregar essa função a quem oferece o menor preço e está buscando lucro", diz Mauer.
Efeito limitado
Todos os envolvidos no debate, contrários ou a favor da mudança, reconhecem que seu efeito imediato será limitado, já que a medida não se aplica às prisões privadas estaduais e locais, nem àquelas que abrigam acusados de violar leis de imigração - que são federais, mas ligadas ao Departamento de Segurança Interna, não ao Departamento de Justiça.
"A decisão serve de alerta para a indústria de prisões privadas, de que deve corrigir os problemas. Mas não será o seu fim", prevê Horn.
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A medida, porém, pode ser um primeiro passo para uma mudança mais ampla.
"Pode influenciar a maneira como os Estados usam prisões privadas. Eles não têm obrigação de seguir o governo federal, mas como ações no nível federal recebem muita atenção, pode gerar um efeito cascata em alguns Estados nos próximos ano", afirma Mauer.
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