O escandaloso abuso de milhares de crianças britânicas enviadas ao exterior
Após a Segunda Guerra Mundial, milhares de crianças britânicas foram enviadas para o exterior com a promessa de uma vida melhor. Mas, chegando a seus destinos, muitas acabaram vítimas de abusos e trabalhos forçados - um escândalo que reverbera até hoje.
Essas realocações tinham como destino países que fizeram parte do Império Britânico e ocorreram até 1974. Apenas à Austrália, chegaram entre 7 mil e 10 mil crianças, parte delas órfãs.
O programa tornou-se o centro de um inquérito da Investigação Independente Britânica sobre Abuso Sexual Infantil (IICSA, na sigla em inglês), que duas semanas atrás começou a realizar audiências públicas no Reino Unido.
Clifford Walsh, de 72 anos, visitou o porto de Fremantle, na Austrália, com a equipe da BBC. Foi lá que ele desembarcou em 1954, aos nove anos. Walsh chegou de Londres procurando ovelhas - haviam lhe dito que elas tinham superado o número de pessoas no país.
Ele foi enviado a uma instituição católica no vilarejo de Bindoon, a 84 quilômetros da cidade de Perth, capital da Austrália Ocidental, no oeste do país. O lugar ficou conhecido como a Cidade dos Meninos de Bindoon.
As imponentes construções daquela área foram erguidas por Walsh e outras crianças imigrantes. Elas eram forçadas a trabalhos pesados, descalças, que começavam um dia após chegarem.
A congregação dos Irmãos Cristãos coordenou o lugar com foco em manter a ordem e um rígido código moral. Com apenas dois dias ali, Walsh diz ter recebido seu primeiro castigo.
"Ele nos bateu e nos chutou, e depois se agachou para nos dizer que não gostava de machucar crianças, mas que tínhamos sido garotos maus. Eu chorei sem parar por horas", relembra.
Abusos
Walsh conta sua história com uma franqueza particularmente australiana. Ele está furioso. Descreve outro irmão atraindo-o para o seu quarto com a promessa de que ganharia doces de melado - que normalmente eram distribuídos, não aos meninos, mas às vacas. O homem abusou sexualmente dele.
Ele conta que outro irmão o estuprou, e que um terceiro espancou-o depois de acusá-lo equivocadamente de ter relações sexuais com um garoto. "Não tínhamos pais; não tínhamos parentes; não tínhamos para onde ir. Esses irmãos, esses pedófilos, devem ter pensado que estavam no paraíso".
Ele acusou os irmãos em 2014 à Comissão Real para a Resposta Institucional do Abuso Sexual Infantil na Austrália, um grupo que investiga como instituições como igrejas e escolas respondem às alegações de abuso.
Essa foi a primeira vez que ele revelou as experiências sofridas, 60 anos depois dos crimes. "Eu estava muito apavorado para denunciar o abuso. Eu não conhecia outra vida", explica Walsh sobre a demora.
"Vivi 60 anos estranhos com este ódio. Não consigo ter um relacionamento sexual normal porque não gosto de tocar as pessoas", diz Walsh. "Mesmo minha mulher, não conseguia abraçá-la".
Ele era perturbado com todas as memórias. "Não podia mostrar nenhum afeto, pois isso me lembrava o que os irmãos faziam o tempo todo".
A Grã Bretanha é talvez a única nação que enviou ao exterior um número tão grande de crianças. Cerca de 150 mil delas foram realocadas num período de 350 anos para a Virginia, nos EUA, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, e o que então era a Rodésia do Sul, atual Zimbábue. A Austrália foi o principal destino na onda final que durou de 1945 a 1974.
Havia dois propósitos nas ações: reduzir o número de órfãos na população do Grã-Bretanha e aumentar a população das colônias.
As crianças eram recrutadas por igrejas católicas e anglicanas ou instiuições de caridade, incluindo Barnardo e a Sociedade de Fairbridge. A motivação era dar às crianças "perdidas" uma nova vida. E seria errado dizer que todas as crianças britânicas que se mudaram sofreram abusos.
Mas,para muitas, o sonho se tornou um pesadelo. Centenas de crianças imigrantes tiveram pouca educação, trabalhos pesados, agressões e abusos sexuais.
Tentativas foram feitas para recriar um lar feliz. Na escola agrícola de Fairbridge, em Molong, a quatro horas de Sydney, crianças viveram em casas de campo, cada uma com alguém para cuidar delas. Fairbridge não era uma ordem religiosa, e algumas crianças que viveram lá agradecem os cuidados que receberam.
Mas esse não é o caso de Derek Moriarty. Ele esteve em Molong por oito anos e foi uma das centenas de crianças que receberam alimentação e educação inadequadas, além de ter sido submetido a trabalhos forçados.
Sua vida foi profundamente afetada pela criação que recebeu em Fairbridge. Ele sofreu nas mãos do então diretor da escola, Frederick Woods. O homem tinha dez cães e um taco de hóquei, que ele usava para bater nos garotos.
Moriarty denuncia o abuso sexual por um membro da equipe, que tirou suas roupas e o molestou. "Eu tinha 10 anos e não entendia aquilo". Ele mais tarde acabou fugindo de Molong, chegou a tentar suicídio aos 18 anos e sofre constantemente de depressão.
Pedido de desculpas
Em 2009, o governo australiano se desculpou pela crueldade cometida às crianças imigrantes. A Grã Bretanha também fez o pedido em 2010.
A pressão por respostas e reparações tem crescido. As perguntas nunca teriam sido feitas se não fosse por duas pessoas que buscam a verdade.
No início dos anos 1980, uma assistente social britânica, Margaret Humphreys, se deparou com pessoas que passaram temporadas na Austrália e que buscavam parentes vivendo no Reino Unido.
Quando crianças, ouviram que seus pais estavam mortos. Mas em muitos casos isto não era verdade. "Suas identidades foram roubadas", ela afirma.
O trabalho de toda sua vida tem sido reunir as então crianças perdidas a seus parentes. Após reintegradas, Margaret desenvolveu laços com muitas delas e começou a descobrir os abusos físicos e sexuais sofridos.
"À medida que se avança, vamos aprendendo mais e mais sobre os níveis e o quão terríveis eram os abusos. Isto tem sido gradual porque as pessoas só podem falar sobre isso depois de um longo período em que se estabelece a confiança. Tem muito trauma envolvido aqui", ela explica.
Mais revelações sobre os lares de Fairbridge foram feitas por um de seus moradores. David Hill foi enviado com seus irmãos de Tilbury, na Inglaterra, para a fazenda de Fairbridge em 1959. Ele foi sortudo, já que sua mãe mais tarde o seguiu e garantiu-lhe um futuro estável.
Ele se tornou uma figura pública na Austrália como presidente e diretor-geral da rede ABC. Além disso, é um historiador entusiasta. Hill reuniu os meninos e meninas de Fairbridge para contar suas histórias de agressões e abusos.
Derek Moriarty estava entre aqueles que falaram sobre assunto pela primeira vez. O material fez parte de uma pesquisa para o livro de Hill lançado em 2007 e intitulado The Forgotten Children (As crianças esquecidas, em tradução literal) e um documentário na rede ABC em 2009.
"Eu senti um peso tirado dos meus ombros quando contei a ele", disse Moriarty. "Mas meu abuso é insignificante se comparado a de outros". O trabalho de Hill desencadeou uma série de denúncias de homens e mulheres sobre suas experiências na infância.
Com base em mais de cem entrevistas, Hill estima que 60% das crianças de Fairbridge foram abusadas sexualmente. O escritório de advocacia australiano Slater and Gordon conseguiu na Justiça uma compensação para 215 crianças, das quais 129 sofreram abuso sexual.
Para os Irmãos Cristãos, os números são ainda mais altos. A Comissão Real Australiana revelou que 853 pessoas acusaram membros da congregação.
Hill é uma das testemunhas que prestarão depoimento na IICSA. A comissão examina de perto a migração infantil. Em 1998, o comitê que investiga a administração do departamento de saúde do Reino Unido também conduziu interrogatórios. Neles, a organização Child Migrants Trust descreve os Irmãos Cristãos como "a realização quase completa do sonho de um pedófilo".
A organização acrescenta que a ordem "foi muito insistente de que os abusos não eram conhecidos daqueles que controlavam as instituição" e acrescneta: "Não podemos aceitar isso".
Fontes próximas ao inquérito ouvidas pela BBC dizem que a investigação produzirá novas e chocantes revelações sobre a escala dos abusos sexuais e das tentativas das instituições britânicas e australianas de acobertá-las.
Responsabilidade britânica
O inquérito também poderia responder a uma questão crucial: o governo britânico sabia que estava enviando crianças para serem maltratadas em outro país?
Margaret Humphreys é inflexível: "Queremos saber o que aconteceu, quem praticou e quem encobertou tudo isso por tanto tempo". De fato, documentos do governo revelam que o programa de migração poderia ter terminado bem antes. Em 1956, três oficias foram enviados à Austrália para inspecionar 26 instituições que receberam as crianças britânicas.
O relatório identificou a falta de noções sobre cuidados infantis e alertou que as crianças viviam em áreas rurais remotas. Uma segunda parte do relatório, até então secreto, foi ainda mais longe.
Ele citou nomes de cinco instituições que não estavam nos padrões adequados. Quando o Ministério do Interior do Reino Unido viu o documento, incluiu outros cinco, no que se tornou uma lista negra - lugares que não deveriam receber mais crianças. Fairbridge Molong e Bindoon estavam na lista.
O relatório não mencionou abusos físicos ou sexuais, embora acusações tenham recaído sob três diretores de Fairbridge. Frederick Woods - o homem que batia nas crianças com um taco de hóquei - foi acusado de abusar de uma menina, e uma investigação interna acabou por exonerá-lo.
Houve tentativas de impedir que as pessoas descobrissem a verdade. Documentos do Arquivo Nacional mostram que em 1957 o Conselho de Migração ao Exterior do governo lamentou que a missão de inspeção tivesse acontecido. E recomendaram "fortemente" que "o relatório não deveria ser publicado".
Os documentos do governo também mostram que uma reunião dos responsáveis pelo programa de migração e o subsecretário de Estado para relações com comunidades britânicas, Lorde John Hope, discutiu o que deveria ser revelado ao Parlamento sobre o relatório.
A Sociedade de Fairbridge do Reino Unido colocou pressão no caso. Seu presidente era o Duque de Gloucester, tio da rainha. E oficiais discutiram as "repercussões parlamentares imediatas" que resultariam ao se terminar o programa de migração.
Sir Colin Anderson, diretor do Orient Line, que se beneficiou do negócio de embarcação das crianças, pediu que o relatório não fosse levado a público devido à polêmica que ele poderia causar.
O inquérito
O inquérito que investiga os abusos deve durar cinco anos, e sua primeira fase deve consistir de 13 investigações independentes. Numa simpática ligação, um alto oficial do Conselho de Migração ao Exterior respondeu que a Sociedade de Fairbridge fazia um esforço que era elogiado pela maioria.
Em junho de 1957, o escritório de Relações com as Comunidades Britânicas enviou um telegrama secreto ao Alto Comissariado do Reino Unido na Austrália afirmando: "Não queremos recusar a aprovação" de crianças serem enviadas do Reino Unido. Após pressões da Sociedade de Fairbridge, 16 crianças esperando para viajar foram então encaminhadas.
A recomendação-chave dos inspetores, de que o secretário do Interior britânico concordava com cada decisão de enviar uma criança, foi discretamente arquivada.
A Sociedade de Fairbridge continuou a enviar as crianças, embora concentrando naquelas cujas mães pretendiam juntar-se a elas mais tarde.
Trauma continua
A resposta de David Hill é a raiva, ainda hoje. Com lágrimas nos olhos, ele diz: "Estou surpreso do quão vulnerável eu me senti e de que isto pudesse acontecer repetidamente na dimensão que aconteceu".
"O governo britânico não apenas continuou a aprovar que as crianças fossem enviadas, mas subsidiou financeiramente o envio delas. Para instituições que eles colocaram numa lista negra por serem inadequadas a crianças, condenadas".
A escola agrícola de Molong finalmente fechou as portas em 1973. A Sociedade de Fairbridge agora integra a organização Prince's Trust e ainda coordena atividades de lazer para crianças.
A Prince's Trust garante nunca ter se envolvido na migração infantil, mas armazena o arquivo da antiga Sociedade de Fairbridge. "Estamos cooperando totalmente com este importante inquérito". Bindoon permeneceu aberta até 1966. Hoje é usada como uma universidade católica.
Responsabilidade britânica
Clifford Walsh acredita que o inquérito ajudará a responder perguntas sobre a culpa dos governo e instituições britânicas. "Eles nos mandaram para um lugar que era um inferno na Terra. Como que eles não sabiam? Por que não investigaram? E se investigaram, então eles foram incompetentes ou acobertaram o caso".
O programa de migração infantil também trará envidências do esforço britânico de considerar os efeitos de longo prazo do abuso sexual infantil. Algo que será tema central do inquérito.
O historiador e menino de Fairbridge, David Hill, estima que vítimas levaram 22 anos em média para começarem a falar sobre o assunto.
Mas isto vai garantir também uma última chance a crianças perdidas britânicas de voltar à terra de seu nascimento e contar suas histórias. A raiva não foi embora, e a infância delas deixou cicatrizes invisíveis que duraram toda uma vida.
Uma das crianças migrantes com quem conversamos nos pediu para não ser identificada. Ele contou ter voltado a Bindoon armado com uma marreta.
O alvo? O local de sepultamento do fundador da instituição, o irmão Paul Keaney. A laje de mármore foi tão destruída que os proprietários de Bindoon, a faculdade católica, foram obrigados a remover o que restava. Foi um pequeno golpe contra uma história de crueldade infantil.
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