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"Vi dois corpos queimando no meio da rua": moradores relatam alívio temporário com chegada de militares à Rocinha

Hanrrikson Andrade/UOL
Imagem: Hanrrikson Andrade/UOL

Júlia Dias Carneiro - Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

22/09/2017 20h12

A italiana Barbara Olivi abriu a escola infantil que mantém na Rocinha todos os dias nesta semana. Nesta sexta, com os fortes tiroteios que começaram pela manhã, quase ninguém apareceu. O guia turístico Carlos Antônio de Souza também não conseguiu fazer visitas guiadas nesta sexta, com a via principal que dá acesso à favela fechada.

Assim como outros moradores, porém, eles não abandonaram suas atividades nesses seis dias de conflito na comunidade.

"Esse é o sexto dia! Durante seis dias você vai fazer o quê, parar a sua vida?", questiona Olivi, que tem quatro projetos sociais na Rocinha e mora na favela desde 2001.

"Somos 250 mil moradores. São 250 mil histórias, rumos, necessidades diferentes. Como é que você para uma cidade de 250 mil moradores?", questiona - rejeitando, como é praxe na favela, a estatística oficial do IBGE, que contabiliza cerca de 70 mil moradores na Rocinha.

Os tiroteios de domingo na maior favela do Rio, na zona sul da cidade, foram os mais fortes que Olivi já ouviu. Mais ainda que os de 2004, quando, de maneira semelhante ao conflito atual, houve uma grande disputa pelo controle da área, e o antigo chefe do tráfico, Lulu, foi morto pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope).

Na tarde desta sexta-feira, as Forças Armadas iniciaram o envio de 950 homens para cercar a Rocinha, que chegaram em tanques às partes baixas e em helicópteros às partes mais altas da comunidade, isolando as fronteiras entre a favela e a Floresta da Tijuca - onde acredita-se que muitos traficantes tenham buscado refúgio.

'Ninguém aguentava mais'

Enquanto os soldados chegavam, Olivi cozinhava uma massa - fusilli italiano - ao receber o telefonema da BBC Brasil. "A gente tem que comer! A gente tem que continuar vivendo", justificou ela, fundadora da ONG Il Sorriso dei Miei Bimbi ("o sorriso das minhas crianças").

Para ela, há uma sensação geral na comunidade de que a chegada das Forças Armadas traz algum alento temporário. "Sinceramente, neste momento, a gente está aliviado. Já é o sexto dia! Ninguém aguentava mais."

Porém, ela vê a medida com desconfiança. "Acho que é muito fácil exibir todo esse poder agora. Mas e quando o povo precisa, cadê? Cadê o governo? Sinceramente, depois que dezenas de jovens foram mortos de um jeito cruel, depois de anos deixando a comunidade esquecida, chegar tocando trombetas alardeando ajuda...", diz.

"Com certeza isso não é a solução, da mesma forma que a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) não foi a solução. Só empurra o problema mais para a frente."

O governador Luiz Fernando Pezão e o secretário de Segurança Pública Roberto Sá solicitaram apoio militar na Rocinha na manhã desta sexta-feira, depois que a comunidade amanheceu, mais uma vez, sob fortes tiroteios - que causaram pânico entre moradores e motoristas que passavam pela favela.

Sob fortes críticas, o governo estadual afirma que tem trabalhado de forma integrada com as forças federais e que "vem priorizando a política de segurança, apesar de todas as dificuldades que tem enfrentado, ciente de suas responsabilidades e da importância da preservação da vida".

Os confrontos se espalharam por pelo menos sete favelas ao longo desta sexta-feira, com tiroteios também no morro Santa Marta, em Botafogo, nos Complexos da Maré e do Alemão, na zona norte, e na Vila Kennedy, na zona oeste, entre outras comunidades. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, 7 mil alunos ficaram sem aulas. Alunos da rede privada também tiveram as aulas canceladas.

O pânico entre moradores na cidade toda pôde ser medido pelos alarmes falsos que rapidamente circularam nas redes sociais - como as notícias de que bandidos teriam invadido um posto do Detran e de que um comboio de seis carros com bandidos estaria circulando pela zona sul - desmentidos mais tarde pela Polícia Militar.

Impacto

Um dos projetos da Sorriso dei Miei Bimbi na Rocinha é uma escola infantil com 85 alunos. Mesmo com os confrontos que fecharam as escolas públicas locais ao longo da semana, deixando milhares de alunos sem aula, Olivi não quis interromper as atividades - afinal, diz, os pais das crianças não poderiam abandonar seus empregos.

"Tínhamos que dar um abrigo a quem aparecesse", diz. Mas só nove crianças apareceram na segunda, e o número permaneceu nesse patamar a semana inteira.

Já Souza não quis deixar de receber turistas para guiá-los pela favela, como faz há 26 anos. Conhecendo a Rocinha na palma da mão, garante que mesmo com conflitos é possível percorrer os lugares-chave - "como moro aqui, conheço todos os hotspots" - antes para saber onde dá para levar turistas, e onde não dá.

Assim, mesmo no domingo em que a favela amanheceu sob fortes tiroteios, levou um grupo de turistas para passear. Antes disso, porém, foi mapear onde levá-los ou não - e presenciou "cenas de guerra" deixadas pelos confrontos.

"Foi uma madrugada muito ruim, quase cinco horas de tiros. Quando acordei, fui andar pela comunidade e vi cenas horríveis. Muita moto queimada, munição deflagrada, paredes e carros com marcas de tiros. Para mim, nada disso era estranho, mas vi dois corpos queimando no meio da rua, coisa que eu nunca tinha visto antes", relata.

"Foi uma cena dantesca. Me deu uma sensação muito ruim de que jogaram vidas fora. A troco de fumaça. A troco de nada. Fiquei muito lamentoso. Quantos jovens jogam a vida fora a troco de sucesso, de uma novinha (uma mulher), uma moto, um colar de ouro, uma arma na mão. Ao ver essa cena, o que me tocou foi esse desperdício, essa coisa nojenta que é a nossa sociedade."

Nas mãos do Estado

Apesar do relato escabroso, Souza diz que agora, com o forte aparato policial enviado para a Rocinha e a chegada das Forças Armadas, a "situação está, entre aspas, legal". "O comércio está funcionando, e agora com a chegada do comboio do Exército, a comunidade vai ser totalmente tomada."

"Estamos com plena consciência de que a polícia vai dar o seu jeito. Não tem mais tráfico no momento, eles estão todos escondidos. A polícia está toda aqui dentro. Estamos nas mãos do Estado", afirma, sem fazer críticas à ocupação.

"Pelo menos sabemos que agora vai ser impossível ter confronto, porque bandido nenhum vai enfrentar a polícia dado o montante que está na comunidade."

Nesse sentido, pondera, agora é bom para trabalhar. "Agora está ótimo para guiar."

Porém, a tensão na comunidade ainda é enorme, diz Souza - "até que se pegue esse pessoal aí", diz, referindo-se aos traficantes foragidos. Ele diz que as ruas estão vazias, com os moradores evitando sair, deixando suas casas apenas para comprar algo no mercado ou ir para o trabalho.

Exercer o direito de ir e vir na comunidade nesta sexta foi ainda mais difícil, com a Estrada da Gávea interditada - a via principal que corta a favela - e a Autoestrada Lagoa-Barra, que conecta a Rocinha e o bairro de São Conrado ao resto da cidade, tendo se mantido fechada por horas.

"E hoje ônibus e vans não circularam por aqui, para que não fossem queimadas", diz Souza. "Só tinha mototáxi."

Vivendo um dia e um clima "completamente extraordinário", Souza se pergunta agora o que acontecerá nos próximos dias e horas, e na calada da noite.

"Muito provavelmente teremos confrontos na mata de noite. Mas agora as matas estão totalmente ocupadas pelo Exército. Então imagino no mais tardar até amanhã se resolve essa coisa. Os bandidos não têm para onde correr. Estão encurralados."