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Foro privilegiado em suspenso: o que está em jogo nos debates na Câmara e no STF

Estatua da Justiça em frente ao STF, Supremo Tribunal Federal - Sergio Lima/Folhapress
Estatua da Justiça em frente ao STF, Supremo Tribunal Federal Imagem: Sergio Lima/Folhapress

Camilla Veras Mota - @cavmota - Da BBC Brasil em São Paulo

22/11/2017 08h26

Dois projetos que podem restringir de forma significativa o acesso de políticos aos tribunais de segunda e terceira instâncias - o chamado foro privilegiado - avançaram nesta semana na Câmara e no Supremo Tribunal Federal (STF). Depois de votações importantes na quarta e na quinta-feira, contudo, o debate está em suspenso.

No STF, a maioria dos magistrados já se posicionou a favor da restrição dos privilégios para políticos, que passariam a ser exclusivos aos casos ocorridos durante o mandato e em decorrência dele. Embora a corte não contabilize o placar, é possível dizer que o resultado parcial é de 8 a 0, com a ressalva de que o ministro Alexandre de Moraes apresentou divergências no voto em que concordou com o relator.

O julgamento foi interrompido, porém, depois que o ministro Dias Toffoli pediu vistas, ou seja, mais tempo para analisar o caso. Não há prazo para que ele devolva o processo de volta à pauta da corte - a medida só passa a valer depois que todos os seus integrantes proferirem seus votos.

Já na Câmara, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que extingue o foro especial para praticamente todas as funções que hoje gozam do benefício passou pela Comissão de Constituição e Justição (CCJ) e aguarda, sem previsão, votação em comissão especial e no plenário da Casa.

A BBC Brasil preparou quatro pontos para explicar o que está em discussão, o que pode acontecer caso as mudanças sejam aprovadas e como funciona o foro privilegiado em outros países e quão amplo ele é no Brasil.

O que está em discussão?

O texto que está na Câmara, a PEC 337/2017, prevê o fim do foro especial para praticamente todas as autoridades hoje previstas na lei. As exceções seriam o presidente da República, seu vice e os presidentes da Câmara, do Senado e do STF.

O projeto já passou pelo Senado e foi aprovado na CCJ da Câmara. A proposta agora será analisada por uma comissão especial e, depois, votada em dois turnos, sendo necessários três quintos dos votos dos deputados (308) para que seja aprovada. Caso os parlamentares mudem o texto, ele teria de voltar mais uma vez ao Senado.

No STF, o julgamento é para restringir o foro somente aos casos ocorridos durante e em razão do cargo ou mandato, não de atos anteriores, e apenas para deputados federais e senadores. Ele havia sido iniciado em junho, mas foi interrompido com o pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, retomado nesta semana e suspenso novamente por Toffoli.

Na primeira sessão, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e a presidente da corte, Cármen Lúcia, se posicionaram a favor. Na votação desta quinta-feira, Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Edson Fachin e Luiz Fux também votaram pela limitação.

Apesar de já ter maioria do colegiado, a decisão do Supremo só tem validade quando todos os magistrados emitirem voto e a decisão for publicada em acórdão.

A mudança discutida no STF é mais branda que a da Câmara, explica o assessor legislativo da Câmara Newton Tavares Filho, porque a corte não tem a prerrogativa de alterar a Constituição, mas apenas de interpretá-la. A extinção do foro, por exigir uma mudança da Carta, precisa passar pelo Legislativo.

O caso específico em julgamento no Supremo é uma questão de ordem relatada por Barroso e relativa à Ação Penal 937, que analisa a situação do prefeito de Cabo Frio (RJ), Marquinho Mendes (PMDB).

Denunciado por compra de votos nas eleições de 2008, o político cumpriu o mandato, assumiu como deputado federal em 2015 como suplente de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e, em 2016, foi eleito pela terceira vez em Cabo Frio, fazendo com que seu processo mudasse de foro diversas vezes.

O que mudaria

Barroso estima que, com a restrição discutida no STF, cerca de 90% dos casos envolvendo políticos que estão hoje na Suprema Corte seriam enviados a instâncias inferiores.

Só ficariam aqueles que tivessem relação direta com a função dos deputados e senadores e que fossem cometidos durante o mandato. Eventuais crimes praticados antes da posse dos parlamentares, portanto, não seriam investigados e julgados pelo Supremo.

A PEC que tramita na Câmara, por sua vez, teria impacto ainda maior, já que acabaria com o privilégio de foro para um número muito maior de funções. O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso, estima que 45 mil pessoas no Brasil tenham a acesso a ele - de deputados, senadores, prefeitos, governadores e ministros a magistrados, promotores e desembargadores.

Seja a versão mais tímida ou a mais ampla, as mudanças propostas no foro dariam grande protagonismo a juízes mais jovens, de primeira instância, diz o ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) José Augusto Delgado.

"Ao serem chamados a proferir decisões contra autoridades, eles não poderão se deixar pelo prestígio e pelas pressões do julgamento", aconselha.

Eloísa Machado, coordenadora do Supremo em Pauta da FGV Direito-SP, pondera, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, que a interrupção do julgamento no Supremo deixa dúvidas nesse sentido. Com a mudança, juízes de primeira instância poderão, por exemplo, enviar ordens de prisão diretamente às casas legislativas ou determinar a condução coercitiva de deputados para prestar depoimentos?

Como funciona em outros países

O foro especial é utilizado em diversos países sob a justificativa de proteger cargos públicos-chave de perseguição política. A ideia é permitir que autoridades sensíveis a represálias e intimidação sejam julgadas por tribunais isentos, explica Tavares Filho, consultor legislativo da Câmara.

"A questão é que nós não temos provas concretas dessa isenção", pondera o especialista, ressaltando que Brasil é recordista no número de autoridades com foro privilegiado.

Autor de um estudo técnico que compara o sistema brasileiro com o de 16 outros países, o especialista não encontrou nenhum tão abrangente. De maneira geral, ele afirma, no resto do mundo o foro especial é restrito a poucos líderes, um número que dificilmente passa de algumas dezenas - presidentes da República, do Senado, da Câmara, primeiros-ministros.

Em muitos casos, a prerrogativa se limita aos delitos relacionados ao cargo e não abrange os crimes comuns, como no Brasil. Os crimes de responsabilidade, que ensejam os processos de impeachment, têm um conjunto de regras à parte, que também varia a depender do país.

O sistema mais parecido com o do Brasil encontrado foi o da Espanha, onde todos os parlamentares têm direito a foro privilegiado e, por isso, são julgados apenas pela Câmara Penal do Tribunal Supremo. "Estamos falando de algumas centenas de pessoas, isso já é uma situação excepcional", diz Tavares Filho.

A lista também é longa na Colômbia, onde os congressistas - além de alguns magistrados, determinados agentes do Ministério Público, procurador-geral, controlador-geral etc. - estão sob a competência da Corte Suprema.

Os Estados Unidos são o extremo oposto. Nem o presidente americano tem prerrogativa de foro. Esse é um privilégio restrito a alguns diplomatas, embaixadores e cônsules - ou seja, é uma questão mais ligada ao direito internacional.

Na Alemanha, o foro existe apenas para o presidente, que é julgado pela Corte Constitucional em casos de impeachment, previsto para qualquer violação da lei constitucional ou da lei federal. Para ser aberto, o processo precisa passar por uma moção no Bundestag e no Bundesrat, equivalentes à Câmara e ao Senado.

A constituição francesa, por sua vez, dá imunidade ao presidente, que não pode ser sujeito a nenhuma ação, ato de instrução ou ato persecutório perante nenhuma jurisdição ou autoridade administrativa enquanto estiver no cargo. Os casos de impeachment tramitam em uma corte especial formada por membros do Congresso.

Em 1993, os ministros de Estado franceses perderam o foro privilegiado na Suprema Corte e passaram a ser julgados pela Cour de Justice de la République, formada por 12 parlamentares e 3 juízes, apenas nos casos em que os delitos estão diretamente ligados ao cargo. O órgão foi recentemente definido como "jurisdição de exceção" pelo presidente Emmanuel Macron, que é favorável à sua supressão.

Como já foi no Brasil

Mas se hoje o Brasil se destaca pelo alcance das categorias com foro especial, a situação já foi ainda mais abrangente.

Até 1999, a prerrogativa de foro por função no Brasil valia mesmo depois do fim do exercício funcional - no caso dos políticos, do mandato. A previsão foi estabelecida pela Súmula 394, editada em 1964 e cancelada pelo próprio STF.

Foi ela que garantiu que o ex-presidente Fernando Collor fosse julgado em 1994 pelo Supremo na ação penal que apurava a prática de corrupção passiva. Ele foi absolvido por falta de provas. A mudança na regra permitiu que as denúncias contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, fossem enviadas à primeira instância.

O presidente em exercício continua sendo processado e julgado pelos ministros do STF, mas apenas com autorização da Câmara dos Deputados. O caso recente envolvendo Michel Temer é ilustrativo nesse sentido. Ele foi denunciado pela Procuradoria-Geral de República (PGR) duas vezes neste ano, mas o plenário da Casa bloqueou o prosseguimento. O processo fica parado até o peemedebista deixar o Planalto e, depois disso, será enviado à primeira instância.

O ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) José Augusto Delgado lembra que até recentemente os governadores também gozavam da blindagem do Legislativo. Para que fossem processados no STJ, era preciso que as assembleias estaduais permitissem.

Duas decisões do STF de maio, uma delas envolvendo processo que tinha como réu o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), mudaram a jurisprudência sobre o assunto.

"Eu passei 17 anos no tribunal, recebi vários processos contra governadores. Em nenhum deles a assembleia permitiu que eles se tornassem réus", diz ele, que integrou o STJ entre 1995 e 2008.