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PCC pode ter guerra interna e nova liderança após transferência de chefes, diz promotor ameaçado pela facção

O promotor Lincoln Gakiya, que investiga o PCC desde 2005, tem escolta policial 24 horas por dia devido a ameaças da facção - Arquivo pessoal
O promotor Lincoln Gakiya, que investiga o PCC desde 2005, tem escolta policial 24 horas por dia devido a ameaças da facção Imagem: Arquivo pessoal

Leandro Machado e Luiza Franco

Da BBC News Brasil em São Paulo

20/02/2019 08h11

Principal responsável por investigar a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), o promotor Lincoln Gakiya afirma que o grupo pode passar por disputa interna e novas lideranças podem emergir após a transferência da cúpula da organização para presídios federais, na semana passada.

Gakiya foi responsável por pedir à Justiça a transferência de 22 membros da organização de São Paulo para presídios federais - eles foram para detenções em Brasília, Porto Velho e Mossoró (RN). Entre os detentos removidos estão Marcos Willians Camacho, conhecido como Marcola, principal chefe da facção.

Em entrevista à BBC News Brasil, Gakiya diz que a transferência dos detentos deve ser encarada como uma oportunidade para o Estado avançar no combate à facção - para ele, o foco agora deve ser rastrear como o grupo utiliza seu dinheiro. O promotor acredita que, se a facção não for contida, e se adquirir "expertise em lavagem de dinheiro", pode se tornar uma organização comparável a uma máfia.

Gakiya não acredita que o PCC venha a realizar algum tipo de retaliação em virtude das transferências, como ocorreu em 2006. Em maio daquele ano, centenas de presos da facção foram transferidos para o presídio de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Em poucos dias, houve uma guerra entre membros da facção e agentes de segurança - dezenas de policiais foram mortos e mais de 500 civis, assassinados.

"Não podemos descartar nada. Houve uma grande preparação para esta remoção. Mas não acredito que possa haver algo como o que aconteceu em 2006", disse.

No Ministério Público desde 1991, Gakiya começou a investigar o PCC em 2005. No ano seguinte, passou a andar escoltado por policiais em virtude das ameaças de morte. Em dezembro do ano passado, a polícia interceptou cartas com parentes de detentos que continham um plano de execução do promotor e de outras autoridades. Ele deveria ser morto caso Marcola fosse transferido para um presídio federal, segundo as mensagens. Em janeiro, outras cartas reafirmaram o pedido da cúpula da facção para que membros nas ruas assassinassem o promotor.

"A vida social minha e da minha família hoje é bastante limitada, mas a gente precisa continuar trabalhando", disse à BBC News Brasil.

Leia abaixo a entrevista.

BBC News Brasil - Quem são os 22 transferidos, além do Marcola, e qual a consequência dessas transferências para o PCC?

Gakiya - Foram transferidos Marcola e outros membros da cúpula da organização. São pessoas da sintonia final geral (primeiro escalão do PPC) e do segundo escalão.

Para nós, que combatemos essa facção, essa remoção representa um avanço, porque nunca havíamos conseguido transferir várias lideranças ao mesmo tempo, em regime de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado, quando o preso fica separado dos demais, dos meios de comunicação e só tem direito a duas horas diárias de banho de sol).

Eles ainda são os líderes, mas estão isolados. O objetivo é tentar cortar ligações desses líderes com seus comandados, que estão em outras prisões e em liberdade. A intenção é provocar um abalo na estrutura do PCC.

BBC News Brasil - Sabemos que, quando acontece uma prisão, as facções se adaptam muito rapidamente, criminosos se substituem. Como está a situação do PCC após as remoções? A organização está sem comando?

PCC BBC - Robson Ventura/Folhapress - Robson Ventura/Folhapress
Líder do PCC e outros 21 integrantes da maior facção brasileira foram transferidos para presídios federais
Imagem: Robson Ventura/Folhapress

Gakiya - Já havia comandos na rua, criminosos em liberdade, egressos. Isso permanece. Mas a sintonia final geral, que é como se fosse o conselho deliberativo da organização, ficava na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau. Eles foram removidos todos de uma só vez. Isso causou momentaneamente uma ausência (da cúpula da organização). Eles continuam sendo integrantes da cúpula, mas estão isolados.

Em paralelo, houve uma série de remoções de presos para outras prisões do Estado para dificultar a reacomodação, essa substituição de peças. O setor de inteligência já havia investigado e detectado quem seriam as pessoas que ficariam no lugar da sintonia caso ela fosse removida, e eles foram todos removidos juntos, de uma vez só.

Não é que estejam sem liderança, mas a liderança que ficou no sistema possivelmente aguarda ordens que podem vir desses líderes no sistema federal.

BBC News Brasil - Há rumores de que o Marcola já encontra certa resistência dentro do PCC, principalmente depois da morte do Gegê do Mangue e do Paca (membros do PCC assassinados em fevereiro de 2018). Essas transferências podem contribuir na contestação da liderança do Marcola?

Gakiya - Essas situações agora serão melhor avaliadas. O que ocorreu no ano passado foi o assassinato de dois líderes supostamente a mando de um criminoso ligado ao Marcola.

Chegou até nós a informação de que criminosos em liberdade não aceitaram bem esses assassinatos.

No entanto, não tiveram força para confrontar o Marcola. Agora, com esse isolamento não só dele, mas de todos os parceiros dele de confiança, que estão ao lado dele desde 2003 na liderança do PCC, é bem provável que surja alguma disputa interna pelo poder.

Ou que haja indivíduos que não concordem com os posicionamentos que o Marcola tomou.

BBC News Brasil - Em 2006, houve ataques depois de transferências de líderes. Dessa vez, por ora, não houve retaliação. O sr. acha que é possível que aconteça?

Gakiya - Não podemos descartar nada. Houve uma grande preparação para esta remoção. O governo está preparado e o serviço de inteligência também. Temos atuado de forma muito eficiente. Primeiro, atuamos para prevenir o resgate (havia a suspeita de um plano para resgatar Marcola da prisão).

Descobrimos planos de assassinato de agentes do Estado - o meu, inclusive -, justamente para tentar forçar o Estado a recuar e não transferir presos para o sistema federal.

Mas não acredito que possa haver algo como o que aconteceu em 2006. Ali, houve um descompasso entre a transferência dos presos e as medidas que poderiam ser tomadas para evitar qualquer retaliação de bandidos que ficaram no sistema e dos que estavam em liberdade.

O Estado não contou com a reação deles, foi pego de surpresa. Agora a situação é diferente, há uma preparação, a polícia está presente nas ruas, o sistema penitenciário está bem cuidado - inclusive já houve visitas este final de semana. Não acredito que possam ocorrer episódios como os de 2006, mas a polícia permanece de sobreaviso.

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BBC News Brasil - Fala-se muito sobre a existência de um suposto pacto de não-agressão do PCC com o governo de São Paulo. O senhor acredita nisso?

Gakiya - Ouço falar muito disso. Desconheço qualquer tipo de acordo e sou absolutamente contrário a isso. Quando o governo de São Paulo demorou para fazer a transferência dos criminosos para o sistema federal no ano passado, eu mesmo pedi. Penso que o Estado não pode retroceder por medo de retaliação do crime. 2006 foi um episódio negro da história do Estado, mas não pode impedir o Estado de tomar atitudes.

O que acontece é que eles (os presos) ameaçam. Fazem isso justamente para ver se o Estado recua. Já houve casos em que o Estado (que não São Paulo) teve que recuar quando tentou instalar bloqueadores de sinal de celular, por exemplo. Nesses casos, não é um acordo formal, mas tácito. No caso de São Paulo, isso não aconteceu.

BBC News Brasil - Hoje, o PCC é uma facção presente em vários Estados, e também fora do país. Se nada for feito, até onde o senhor acha ela pode chegar?

Gakiya - Se não houver um combate eficiente, não só por parte dos Estados, mas do governo federal, e um combate integrado, o PCC pode se tornar uma organização mafiosa.

Hoje, ela está num estágio de pré-máfia. Se se tornar uma organização com lavagem de dinheiro eficiente, com uso de doleiros e de outros negócios para desviar o foco da droga, vai se transformar um problema muito maior.

Senão vamos viver uma situação parecida com a da Colômbia, na época do Pablo Escobar, ou com a que está vivendo o México, com o El Chapo. Essa reação só vai ser eficiente se for integrada. Temos que ter medidas para fazer integração nacional e com outros países.

BBC News Brasil - O que falta para o PCC ser uma máfia?

Gakiya - Falta expertise na lavagem de dinheiro. Há indícios de que o PCC manda dinheiro para fora do país, cometendo evasão de divisas, mas ainda precisamos seguir esse dinheiro para entender se está virando bens em outros países, caracterizando lavagem de dinheiro.

Aqui no Brasil há lavagem de dinheiro por parte dos líderes. Provavelmente, haverá um trabalho em cima disso. Eles lavam dinheiro com empresas de ônibus, garagens, postos de gasolina, negócios que facilitam esse tipo de lavagem. Mas o PCC, como organização, ainda não tem (um esquema desses). O dinheiro está sendo mandado para fora do Brasil e às vezes até mesmo enterrado aqui mesmo.

BBC News Brasil - Qual a perspectiva desse combate integrado?

Gakiya - Mudar o foco. Já houve uma fase de conhecimento da organização. Eles têm uma facilidade de substituição de peças, mas a engrenagem é a mesma, e a gente já sabe como funciona. Mas precisamos mudar a forma de atuar. Não basta essa atuação de enxugar gelo no Estado de São Paulo.

A gente não consegue atacar a base financeira, porque esse dinheiro não circula no mercado formal - não está em nome de laranjas, não está em empresas. O dinheiro é enviado para o Paraguai, para a Bolívia? Vamos precisar atuar em conjunto para seguir o caminho do dinheiro até onde ele vai se transformar na compra de um material - em geral, cocaína e maconha.

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BBC News Brasil - O senhor acha que está enxugando gelo?

Gakiya - O trabalho que fazemos é importante. Quando o PCC preenche os quadros, nós precisamos investigar e tirar esses integrantes de circulação. Talvez essa nova remoção seja o início de uma nova era. Não vai se cortar em 100% a comunicação dessas lideranças porque isso ainda é impossível no Brasil.

O Estado precisa aproveitar esse momento para iniciar uma nova fase de combate, atacar as bases financeiras, juntamente com o governo federal e outros Estados.

BBC News Brasil - Muitos especialistas em segurança pública dizem que o aumento da população carcerária ajuda o PCC, oferecendo mão de obra para a facção. O senhor concorda?

Gakiya - Sempre digo que a primeira coisa que explica o crescimento da facção é a ausência do Estado. Onde o Estado está ausente, seja em superlotação de presídio, seja nessas comunidades mais pobres, a facção encontra terreno fértil.

Na questão carcerária, é preciso atacar em várias frentes. Precisamos pensar na criação de vagas ou na diminuição da massa carcerária. Acho que principalmente é preciso fazer com que ser parte de organização criminosa não seja vantajoso para o preso. Principalmente líderes. Por exemplo, no caso desses 22 transferidos, eles vão perder contato com suas bases, com suas famílias, e serão mandados para outras regiões.

Nosso plano aqui no Estado é propor a construção de uma nova penitenciária de segurança máxima só para abrigar integrantes de organização criminosa que tenham alguma função. Aí a gente retira esse pessoal que faz essa cooptação de jovens e de pessoas que ingressam no sistema pela primeira vez e os mandamos para uma penitenciária com mais rigor.

BBC News Brasil - Em que pé está a guerra do PCC com o Comando Vermelho?

Gakiya - A guerra continua nos Estados. Ela deu uma arrefecida, talvez até em função desses rumores de transferências das lideranças. Mas guerra foi ruim para todas as facções, elas perderam integrantes, morreu muita gente nas prisões. Isso é algo que ainda não foi resolvido.

BBC News Brasil - O senhor sabe se existe negociação do PCC com outras facções criminosas do Rio, rivais do Comando Vermelho, como Amigos dos Amigos ou Terceiro Comando Puro?

Gakiya - Há tempos, o PCC era aliado do Comando Vermelho. Fizeram negócios, como compra de drogas e armas. Depois, houve o rompimento, a guerra.

O PCC teria se aproximado do Nem da Rocinha por meio de lideranças que estavam no sistema federal. O Nem era da ADA (Amigos dos Amigos), no Rio. O PCC teria fornecido armamento para o Nem confrontar um rival.

Agora, o Nem da Rocinha passou para o Terceiro Comando Puro (TCP). Então, o PCC agora é aliado do TCP. Essas coisas são muito dinâmicas, quem trabalha nessa área precisa ficar atento a essas mudanças. Pois elas podem causar mortes dentro do sistema penitenciário se você não separar os presos. E também guerra nas ruas.

BBC News Brasil - Que tipo de presença o PCC tem no Rio?

Gakiya - O PCC está presente no Rio, mas ainda de forma tímida. Tem vários integrantes do PCC que negociam drogas, armamento para o TCP. O que eles estão proibidos de fazer são negócios com integrantes do Comando Vermelho. Os negócios do PCC basicamente estão na favela da Rocinha, que é comandada pelo TCP.

BBC News Brasil - O senhor entrou para o MP em 1991 e investiga o PCC desde 2005. Como começou esse trabalho?

Gakiya - Sou bastante curioso. Quando comecei a investigar o PCC, já tinha problemas de ameaças. No começo, queria saber quem poderia autorizar um atentado contra um promotor. Acabei subindo na investigação até a cúpula da organização.

O que nos diferencia, nessa investigação que eu coordeno, é que a gente não para. Trabalhamos todos os dias desde 2005. Já estamos em 2019, e é como se fosse uma novela. Um seriado do Narcos da Netflix com vários capítulos e temporadas.

BBC News Brasil - Como reagiu a ter que andar com escolta?

Gakiya - Quando a nossa família percebe isso, é uma reação de tristeza sobre a que ponto chegou nosso país. A gente fica com a liberdade restrita por simplesmente fazer o que a gente deve fazer, o trabalho do dia a dia.

Nossa vida social hoje é bastante limitada em virtude dessa situação, mas a gente tem de continuar trabalhando. Como eu falei, foi só a primeira fase. A gente pretende levar em frente a investigação.

BBC News Brasil - Quando o senhor se aposentar do MP, que ponto o senhor gostaria de ter atingido nessa investigação?

Gakiya - É difícil dizer. Já existe uma base de informações sobre o funcionamento da organização. Apostamos que essas transferências vão ter um resultado favorável, pode ter uma disputa interna e talvez surja até uma nova liderança.

O que quero deixar é um caminho pavimentado para promotores mais jovens, que tenham o perfil adequado e que saibam o que vão enfrentar nessa investigação, que possam fazer um trabalho talvez mais qualificado e competente que o meu.