Governo Bolsonaro: MEC pede que escolas toquem hino e leiam carta com slogan de Bolsonaro; advogados criticam
Governo pede que escolas filmem alunos durante execução do hino e enviem arquivo para Brasília; MEC diz que cumprimento do pedido é voluntário e faz parte da política de valorização de símbolos nacionais.
O Ministério da Educação (MEC) enviou um comunicado para diretores de escolas públicas e privadas do país pedindo que, "no primeiro dia da volta às aulas", os alunos sejam perfilados para a execução do hino nacional e a leitura de uma carta do ministro Ricardo Vélez Rodríguez, que se encerra com o slogan da campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PSL), "Brasil acima de tudo. Deus acima de todos". O MEC pediu ainda que o momento seja filmado e o arquivo de vídeo, enviado ao governo.
Diz a mensagem: "Prezados Diretores, pedimos que, no primeiro dia da volta às aulas, seja lida a carta que segue em anexo nesta mensagem, de autoria do Ministro da Educação, Professor Ricardo Vélez Rodríguez, para professores, alunos e demais funcionários da escola, com todos perfilados diante da bandeira nacional (se houver) e que seja executado o hino nacional".
"Solicita-se, por último, que um representante da escola filme (pode ser com celular) trechos curtos da leitura da carta e da execução do hino nacional", disse o MEC.
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Na carta, Veléz escreve: "Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!".
PT e o PSOL anunciaram que entrarão com uma representação no Ministério Público Federal por crime de responsabilidade contra Vélez, porque a reprodução do slogan de campanha do presidente configuraria "apropriação da coisa pública para interesses particulares" - uma avaliação compartilhada por advogados e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), braço do Ministério Público Federal (MPF), enviou um pedido de esclarecimentos a Vélez Rodríguez. No pedido, a PFDC cita o artigo 37 da Constituição de 1988. Este proíbe os agentes públicos de veicular nas mensagens oficiais símbolos, nomes ou imagens que possam ser entendidos como promoção pessoal ou partidária.
Após a polêmica, o MEC revisou a medida e divulgou uma nova versão da carta, sem o slogan. Também informou que não pedirá mais o envio das gravações.
Uso do slogan de campanha
Luciano Godoy, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), diz que um slogan de campanha eleitoral não pode ser usado em mensagens oficiais. "A propaganda do governo deve ser impessoal e não pode fazer propaganda oficial, por isso os governos desde FHC adotam um slogan diferente daquele da campanha, para não cair nesta ilegalidade."
Carlos Affonso Souza, professor de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, concorda e destaca que a Constituição determina no Artigo 37 que "a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos".
Souza relembra que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o assunto em 2014. A Corte confirmou uma decisão de instâncias inferiores que condenou José Cláudio Grando, ex-prefeito de Dracena, no interior de São Paulo, por improbidade administrativa por ter usado em documentos públicos, placas de obras da prefeitura e camisetas usadas por funcionários municipais os slogans de sua campanha eleitoral - "Dracena Todos por Todos Rumo ao Ano 2000" e "Dracena Rumo ao Ano 2000".
"Toda e qualquer conduta que de forma direta ou indireta vincule a pessoa do administrador público a empreendimentos do Poder Público constitui sua promoção pessoal para proveito político, usando ilegalmente a máquina administrativa para esse fim", disse o STF na decisão.
Mônica Sapucaia Machado, doutora em direito político e econômico, diz que a medida contraria vários preceitos legais. "O agente público (como o ministro) não pode usar instrumentos da máquina pública para se enaltecer. A comunicação do ministro da Educação com as escolas deveria ter caráter oficial, para informar sobre políticas a serem implementadas", diz a especialista, que é coordenadora da pós-graduação em Direito Administrativo da Escola de Direito do Brasil (EDB).
Machado diz ainda que a ação do MEC pode ir contra o pacto federativo - pois a maioria das escolas públicas são administradas por Estados e municípios, que deveriam ter sido consultados.
Já a advogada constitucionalista Vera Chemim diz que não há ilegalidade, desde que não haja obrigação a atender ao pedido. Ela afirma que o MEC não vai além de suas competências ao formular a solicitação. "Faz parte da atribuição do Ministério supervisionar e formular parâmetros para as escolas", avalia.
Porém, Chemim faz a ressalva de que, se o pedido violar o princípio constitucional da impessoalidade - isto é, conter alusões a símbolos de campanha -, "os agentes públicos podem até ser responsabilizados". "Resta a dúvida sobre se o slogan, no pé da mensagem, é algo que está fazendo promoção do governo", diz.
Violação da privacidade e da liberdade religiosa
Godoy, da FGV-SP, avalia ainda que o pedido de gravação fere a privacidade de alunos, professores e funcionários das escolas. "A Constituição garante a inviolabilidade da intimidade e da privacidade, e o Estatuto da Criança e do Adolescente é ainda mais rigoroso com isso. Por isso, que sempre que é feita uma imagem da criança em alguma atividade escolar, os pais precisam autorizar."
Ele diz também que o uso da expressão "Deus acima de todos" vai contra a liberdade religiosa. "O Estado brasileiro é laico. Quando um documento oficial, ainda mais da área de educação, usa esse termo, está ali fazendo uma opção, que pode ser da grande maioria das pessoas, mas que não é de todas", afirma.
O presidente da Associação Brasileira de Escolas Particulares, Arthur Fonseca Filho, afirma que o pedido é "inconveniente na forma e no conteúdo". "O ministério não deveria mandar um pedido que soa como uma ordem para que alunos cantem o hino. Fazer isso é relevante se estiver inserido dentro de um projeto pedagógico. Mas não posso simplesmente reunir alunos e professores e dizer que cantem o hino porque o ministro quer", diz Fonseca.
"O mais grave é o pedido de envio da gravação. Isso é ilegal. Não posso mandar imagens dos professores, alunos e funcionários sem sua autorização."
Cumprimento era 'voluntário', diz MEC
Em um primeiro momento, o MEC informou à BBC News Brasil em nota que se tratava de um "pedido de cumprimento voluntário" e que "a atividade faz parte da política de incentivo à valorização dos símbolos nacionais".
Diante da polêmica, Vélez disse na terça-feira que foi um erro usar o slogan e pedir que alunos, professores e funcionários fossem gravados sem autorização prévia.
O ministério divulgou então uma versão revisada da mensagem do ministro sem o lema de campanha. Mas manteve a princípio o pedido de que trechos da execução do hino e da leitura da carta fossem filmados e enviados ao governo, mas passou a ressaltar que as escolas deveriam obter autorização legal das pessoas filmadas ou de um responsável.
"Após o recebimento das gravações, será feita uma seleção das imagens com trechos da leitura da carta e da execução do Hino Nacional para eventual uso institucional", esclareceu o ministério na ocasião.
No entanto, na quinta-feira, em resposta ao pedido de esclarecimentos do MPF, a consultoria jurídica do MEC informou que o pedido de envio de gravações foi revisto.
"Cumpre-me anotar, a propósito, que recebi notícia, há pouco, do Gabinete do Exmo. Sr. Ministro de Estado da Educação, no sentido de que, por razões técnicas de dificuldade de guarda desse material (imagens e sons), bem como de segurança, determinará a expedição de nova comunicação, com a retirada do pedido de produção e envio de vídeos."
No documento, o MEC disse ter agido de boa fé e que a inclusão do trecho foi um "equívoco" e "devida e prontamente corrigido". Argumentou também que o pedido "não pode ser objeto de censura".
"Não é crível que qualquer autoridade possa ser censurada por sugerir que o canto do Hino seja praticado, ainda mais num ambiente público ou particular publicizado, como são as escolas. (...) Se, nos estádios e arenas esportivas, quando as seleções nacionais atuam - e mesmo quando se trata de certames nacionais -, os torcedores se submetem à execução do Hino Nacional, pergunta-se: que mal há em cantar o Hino nas escolas?", diz o ofício.
"A prática, aliás, já é comum em muitos estabelecimentos de ensino. Num passado não muito distante, era ainda mais comum. Reiteramos: não foi uma determinação, mas uma sugestão. Homenagear os símbolos nacionais é algo que sobreleva e transcende qualquer opção política, ideológica ou filosófica."
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