A equipe de haitianos que tapa os buracos no asfalto enquanto São Paulo descansa
Um grupo de imigrantes haitianos que fugiram da pobreza no país caribenho trabalha todos os dias para eliminar as falhas no asfalto do centro de São Paulo.
Se tem uma coisa que o paulistano não gosta é buraco no asfalto. Eles parecem ser um defeito inconcebível e inaceitável para quem dirige algum dos 6.253.968 carros registrados na cidade - sem contar quem pilota outro dos veículos computados pelo Detran, como ônibus, caminhão, camioneta, motoneta, motocicleta, triciclo e quadriciclo.
Os buracos ocupam a primeira colocação no ranking de reclamações e sugestões da prefeitura (46.493 chamadas só nesse semestre), acima do cartão de estacionamento para idoso, do incômodo causado por algum cheiro forte, da remoção de entulho e da abordagem social à população em situação de rua.
Por isso, todas as noites, de segunda a sábado, uma turma de haitianos trabalha duro no centro da cidade, embora tapar buracos seja algo como enxugar gelo. Até julho, foram fechados 112.639 na capital. Os imigrantes formam o primeiro grupo de estrangeiros a atuar nesse setor da prefeitura paulistana.
Na quarta-feira (28/8), a BBC News Brasil acompanhou os preparativos para mais uma noite de trabalho em um galpão no bairro do Glicério. Eram oito homens vestidos com uniformes cor de laranja, capacetes azuis e máscaras para filtrar a fumaça que sobe das máquinas e do asfalto raspado no processo de eliminação de um buraco.
'O Haiti é aqui'
No geral, os haitianos chegaram a São Paulo sozinhos, deixando a família para fugir da pobreza e da falta de perspectivas para os jovens. O país da América Central, um dos mais pobres do mundo, tem uma taxa de desemprego de 14% e ocupa a 168º colocação no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas - o Brasil é o 79º.
Cerca de 106 mil haitianos foram registrados no Brasil entre 2010 e 2018, segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra), órgão do Ministério da Justiça. Nessa década, o Haiti foi a nacionalidade com mais imigrantes entrando no Brasil (21,5% do total). Só perdeu o posto no ano passado para os venezuelanos.
É o caso de Jakson François, de 31 anos, natural da pequena cidade de Jacmel.
"No Haiti, só quem consegue chegar na faculdade são filhos de políticos, de ministros, das pessoas ricas. Você não consegue emprego estável. Os jovens vivem de bicos. Eu tinha uma lojinha de roupas que de vez em quando vendia alguma coisa", conta.
Se a vida já era difícil, tudo piorou a partir de 12 de janeiro de 2010, quando um forte terremoto devastou o país e matou mais de 200 mil pessoas.
Uma das vítimas era a filha de François, que tinha apenas dois anos. "Eu estava jogando dominó com uns amigos. O tremor demorou uns dois minutos. Quando voltei, descobri que a casa tinha caído em cima da minha filha. Demorei três dias para conseguir tirá-la dos escombros", afirma.
Ele pisou pela primeira vez na capital paulista em 2013, durante um grande fluxo de imigração haitiana ao Brasil. Na mala, trazia poucas roupas e a esperança de conseguir um emprego que sustentasse os parentes deixados para trás.
Os pais, esposa e outro filho ficaram no Haiti enquanto François encarava uma viagem longa, tortuosa e cara - cerca de R$ 30 mil arrecadados com parentes e com a venda de um carro antigo. "Fui para a República Dominicana, depois para o Equador. De lá, peguei vários ônibus até chegar ao Acre. Depois, mais um ônibus até São Paulo. Foram 60 dias", conta.
Mas foi um difícil começo em São Paulo: dormiu por quatro semanas nas ruas próximas à Missão Paz, entidade filantrópica e católica que ajuda imigrantes recém-chegados à capital. Depois, foi peão na construção civil, ajudante em empresas de eventos e assistente em um restaurante.
Há dois anos entrou na Potenza, uma das companhias contratadas pela prefeitura para tapar os buracos da cidade.
"Do meu salário, consigo enviar uns R$ 800 para a família (seu salário é de R$ 1.500). É um dinheiro que ajuda muito. Sem isso, eles teriam muito dificuldade de sobreviver", diz, sentado em uma sala do galpão da prefeitura.
Ele ficou cinco anos sem ver a família, já que a viagem de ida e volta ao Haiti custa em torno de R$ 6 mil.
'Voltar, nunca mais'
Há mais tempo no Brasil e o mais fluente em português, Jakson François atua muitas vezes como intérprete para os compatriotas que chegam a São Paulo. Na equipe de tapa buracos, alguns servidores só falam crioulo e francês.
Jamil Pierre Louis, de 32 anos, é um dos mais novos na equipe. Fugindo da pobreza, ele, a esposa e um filho foram para o Chile, outro país da América do Sul com forte presença de imigrantes haitianos. Lá, também teve dificuldades para conseguir emprego. Chegou a São Paulo há oito meses e, por indicação de François, logo conseguiu o trabalho no tapa buraco.
Louis e seus colegas têm essa visão bastante pessimista em relação ao país de origem: voltar é uma possibilidade remota.
"Não penso em voltar para o Haiti, só voltaria de férias. A vida lá é muito difícil. Quero que meu filho cresça no Brasil, vire um jogador de futebol ou um doutor", diz ele.
"Vim para o Brasil para conseguir algo melhor. Não volto mais. Não tem nada para fazer lá", afirma Lemour Michel, de 27 anos, encarregado da equipe.
"No máximo, eu ficaria um mês para rever a família. Mas, para morar, nunca mais", diz Wildy Pierre, de 28 anos.
Em 2015, Pierre deixou dois filhos pequenos para vir ao Brasil em busca de emprego. Mas acabou ficando oito meses parado em São Paulo, vivendo de ajuda de compatriotas. Depois, trabalhou em um restaurante de comida chinesa.
"Mas não deu certo", afirma. "O patrão ficava falando que no Haiti não tem nem escola, que todo mundo é burro e morre de fome. Ele falava muito palavrão para mim. Não aguentei e pedi para sair."
Há dois anos, Pierre começou a tapar os buracos do centro paulistano.
Em busca de um emprego
Inicialmente, os haitianos conseguiam um visto humanitário para permanecer no Brasil, depois que o governo brasileiro assinou um acordo com as Nações Unidas para recebê-los.
Porém, a maior parte só conseguia essa permissão já em terras brasileiras. "Por algum motivo que não ficou claro, os haitianos tinham muita dificuldade para conseguir os vistos no consulado brasileiro em Porto Príncipe (capital)", explica Sidarta Martins, diretor do Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado).
"Então, eles precisavam entrar no país por terra, principalmente pelo Acre. Esse movimento gerou uma série de problemas, como a criação de uma rede de coiotes que os exploravam."
Para Leonardo Cavalcanti, coordenador do Observatório das Migrações Internacionais, a conjuntura econômica estimulou a ida de milhares de haitianos pelo Brasil. "Depois do terremoto, a pobreza se acentuou. Já o Brasil vivia de economia aquecida e geração de empregos, além de grandes obras para a Copa do Mundo e das Olímpiadas", explica.
Como matar a saudade
Era por volta das 22h, e os bares estavam cheios na tradicional esquina das avenidas Ipiranga e São João. Enquanto os clientes bebiam cerveja, a equipe de haitianos tapava dois buracos no asfalto.
O barulho noturno e incessante das máquinas às vezes causa atritos com os moradores que querem dormir, pois a prefeitura prefere consertar as ruas do centro durante a noite para não atrapalhar o trânsito.
"Às vezes jogam ovos em nós ou chamam a polícia", diz Jakson François. Um funcionário da prefeitura explica: "Quando tem um buraco, o morador liga reclamando. Mas aí você vem tapar, e ele reclama também, do barulho. Não tem o que fazer..."
A meta da prefeitura é fechar 540 mil falhas no asfalto até o fim do próximo ano e diminuir o tempo médio de espera do conserto dos atuais 45 para 10 dias.
Enquanto seus colegas tapam mais um, Wildy Pierre fala da falta que sente da família. "Estou há quatro anos sem ver meus filhos", conta.
"Como faz para matar a saudade? A gente se fala todo dia pelo telefone. Mas não tenho o que fazer. Eles dependem de mim e desse emprego. Eu penso assim: a vida é uma experiência."
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