4 pontos para entender os protestos no Chile
A desigualdade social, a resposta tardia do governo às mobilizações, as expectativas não cumpridas e o papel dos estudantes explicam parte do que está acontecendo hoje no país sul-americano.
A morte de uma criança de 4 anos na terça-feira (22/10) elevou para 18 o número de mortos na onda de protestos no Chile.
A criança e um homem foram mortos quando um motorista avançou contra uma multidão de manifestantes em San Pedro de la Paz, em Concepción (centro do país), segundo o subsecretário de Interior, Rodrigo Ubilla. Ainda nas últimas 24 horas, um terceiro homem foi morto depois de ter apanhado da polícia, segundo relatos de sua família à agência France Presse.
Desde a sexta-feira, o país vive uma situação de convulsão social e violência não registrada havia décadas.
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Nesta quarta-feira, a maior central sindical do país iniciou dois dias de greve geral, pedindo "o fim de aumentos (de tarifas) e abusos".
A greve ocorre a despeito de um pedido de desculpas, na terça-feira, do presidente chileno, Sebastián Piñera, que também anunciou um pacote de medidas econômicas, descritas como "uma agenda social de unidade nacional".
Em pronunciamento, Piñera lamentou não ter se antecipado à insatisfação popular. "Reconheço essa falta de visão e peço desculpas a meus compatriotas", afirmou, acrescentando que recebeu "com humildade e clareza a mensagem que os chilenos nos deram".
Piñera cancelou um aumento recente de 9,2% nas contas de eletricidade, prometeu aumentar aposentadorias e pensões em 20% e subsidiar aumentos no salário mínimo, entre outras medidas.
As manifestações populares, porém, continuam em marcha nesta quarta-feira ? sexto dia consecutivo ?, reunindo milhares de pessoas nas ruas de Santiago e outras cidades.
A crise começou quando, por recomendação de um painel de especialistas em transporte público, o governo decidiu aumentar o preço das passagens de metrô em 30 pesos, atingindo um valor máximo de 830 pesos (R$ 4,73, na cotação atual).
Como forma de protesto, os estudantes começaram a pular as catracas para entrar nas plataformas do metrô sem pagar a passagem.
A situação piorou a partir de sexta-feira, quando a violência tomou as ruas da capital chilena, Santiago, com incêndios em várias estações de metrô e ônibus, saques a supermercados e ataques a centenas de estabelecimentos públicos.
O presidente Piñera, então, declarou estado de emergência, o que significou o envio de militares para os pontos de protesto. Além disso, o governo ordenou toque de recolher na tarde de sábado.
Além disso, Piñera foi forçado a ceder e anunciou, no sábado à noite, a suspensão do aumento da tarifa do metrô, afirmando que ouvira "com humildade a voz do povo".
No entanto, nenhuma dessas medidas e anúncios aliviou a fúria dos chilenos que participam dos protestos.
No domingo, cidades como Santiago, Valparaíso e Concepción acordaram com sérios danos a prédios e espaços públicos, além de bloqueios em portos e estradas.
As autoridades estenderam o toque de recolher na Região Metropolitana de Santiago, das 19h, horário local, até as 6h da segunda-feira; e nas regiões de Concepción e Valparaíso, das 20h às 6h. Na segunda, os militares anunciaram um novo toque de recolher para ainda mais cedo, às 18h.
Além disso, as aulas foram suspensas em Concépcion e em 43 comunas de Santiago.
O Exército chileno também anunciou toque de recolher em outras cidades, como Coquimbo e La Serena.
Mas o que está por trás dos intensos protestos no Chile?
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, listou quatro ponto para entender as recentes manifestações chilenas.
1. O Chile é um país desigual?
Políticos e especialistas afirmaram que o aumento da tarifa do metrô é apenas a "ponta do iceberg" dos problemas que os chilenos estão enfrentando.
A palavra "desigualdade" ganhou protagonismo nos últimos dias, com centenas de manifestantes insistindo que a diferença social entre pobres e ricos no país é excessiva.
Segundo a última edição do relatório Panorama Social da América Latina, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a parcela de 1% mais rica da população chilena manteve 26,5% da riqueza do país em 2017, enquanto 50% das famílias de baixa renda representavam apenas 2,1% da riqueza líquida.
Por outro lado, o salário mínimo no Chile é de 301 mil pesos (cerca de R$ 1.715,70 ? no Brasil, ele é de R$ 998).
Segundo o Instituto Nacional de Estatística do Chile, metade dos trabalhadores do país recebe um salário igual ou inferior a 400 mil pesos (R$ 2.280) ao mês. Já no Brasil, como comparação, 60% dos trabalhadores (ou 54 milhões de pessoas) tiveram um rendimento médio mensal de apenas R$ 928 no ano passado, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.
Com esse salário, os manifestantes alegam que um aumento na passagem do metrô é inconcebível. Ainda mais se considerarmos que o transporte público no Chile é um dos mais caros da mundo, dependendo da renda média.
Um estudo recente da Universidade Diego Portales aponta que, de um total de 56 países ao redor do mundo, o transporte no Chile é o nono mais caro.
Assim, existem famílias de baixa renda que podem gastar quase 30% de seu salário no transporte público, enquanto, no nível socioeconômico mais rico, o percentual de gastos nesse setor pode ser inferior a 2%.
Dessa forma, o sentimento entre os cidadãos chilenos é de que não houve resposta dos governos a um problema que se arrasta há décadas.
Cristóbal Bellolio, um acadêmico da Universidade Adolfo Ibáñez, disse à BBC News Mundo que "este é certamente um problema estrutural do sistema socioeconômico chileno". "Não é um mistério que o Chile seja um país muito desigual, apesar do fato de haver muito menos pobreza do que antes."
Para Bellolio, o aumento da passagem do metrô se soma ao aumento do custo da eletricidade, da água e da crise no sistema público de saúde.
Os protestos também têm a ver com pensões: o Chile discute há muitos anos uma reforma do sistema privatizado de previdência, que, para muitos, apresenta deficiências significativas.
"É uma mistura que não oferece esperança de tempos melhores, que é precisamente a promessa do governo Piñera. Pelo contrário, acho que as pessoas percebem que o momento é pior", afirma.
Claudio Fuentes, professor de Ciência Política da Universidade Diego Portales, pensa de maneira similar.
"Houve um grande crescimento da classe média, mas é uma classe média precária, com baixas pensões, altos níveis de dívida e que vive muito de crédito e salários muito baixos. É uma situação em que o dia a dia é precário, cheio de incertezas ", diz.
2. Qual é a responsabilidade do governo Piñera?
Tanto a oposição a Piñera quanto alguns de seus aliados concordaram que o atual governo reagiu tarde às manifestações.
Os críticos afirmaram que não houve explicações claras sobre os motivos do aumento da tarifa de transporte e que houve uma "falta de empatia" com os problemas das pessoas por parte do governo.
Além disso, a oposição tem questionado as autoridades pelo fato de o governo ter ameaçado coibir os protestos usando a Lei de Segurança do Estado, sem abordar o mérito das reivindicações. Além disso, os governistas classificaram os manifestantes como "delinquentes" por várias vezes.
"Foi um protesto que começou lento, mas aumentou gradualmente de intensidade, com muitos momentos para reagir. Mas houve apenas duas respostas: tecnocracia e repressão. O painel de especialistas define a tarifa e as Forças Especiais a aplicam. Há planilhas do Excel e repressão, enquanto a política permanece cega, surda e muda", escreveu o jornalista chileno Daniel Matamala em uma coluna no jornal La Tercera.
Piñera foi fortemente criticado na sexta-feira. Enquanto várias estações de metrô estavam pegando fogo, ele foi visto jantando em um restaurante em Vitacura (um dos locais mais ricos de Santiago). Na ocasião, ele estava comemorando o aniversário de um de seus netos.
Assim, os líderes das coalizões políticas da oposição, como a Frente Ampla, começaram a criticar o presidente e seus ministros.
"O governo insiste em concentrar seu discurso na crítica à violência dos protestos, mas suas ações até agora apenas contribuíram para ela. Indolência ("levante-se mais cedo para não pagar passagem mais cara"), mal-entendidos ("crianças em idade escolar não têm motivos para protestar") e repressão. Não é assim", escreveu o deputado Gabriel Boric em seu perfil no Twitter.
A ex-candidata presidencial da Frente Ampla, Beatriz Sánchez, disse: "Só precisamos pensar em como o Chile seria diferente se os governos ouvissem o povo antes".
Até um ex-ministro do primeiro governo de Piñera, Harald Beyer, disse ao jornal La Tercera que o episódio "demonstrou a falta de habilidade do governo para lidar com situações como essa".
Por outro lado, a oposição também não escapou das críticas: há quem diga que ela reagiu tarde e não fez nada para melhorar a qualidade de vida dos chilenos, além de "apoiar os protestos violentos".
"A oposição cometeu um grande erro: validou a violência (das manifestações). Eles não disseram isso explicitamente, mas estavam desgastados ao contextualizar a violência como parte do descontentamento. E, nesse sentido, o Partido Comunista e a Frente Ampla remaram para o lado do fogo", diz Cristóbal Bellolio.
3. Como as expectativas de melhorias sociais influenciam o desconforto das pessoas?
Há anos, a classe política chilena vem prometendo melhorias na qualidade de vida dos cidadãos. Reformas educacionais, constitucionais, tributárias e de saúde foram anunciadas, mas muitas delas falharam em atender às expectativas da sociedade.
A agitação social resultou nessa série de manifestações que terminaram em violência e destruição.
As causas do descontentamento vieram das expectativas geradas pela sequência de dois governos antagônicos: Michelle Bachelet (de 2006 a 2010 e depois de 2014 a 2018), de centro-esquerda, e Sebastián Piñera, de centro-direita ? que também liderou o país em um período anterior, entre 2010 e 2014.
"Se os primeiros governos tanto de Bachelet quanto de Piñera eram símbolos de mudança, as segundas gestões de ambos esgotaram o estoque de esperanças. Eles pegaram a retroescavadeira e enterraram os melhores tempos. Eles estavam surdos à falta de um projeto nacional, um caminho para o desenvolvimento, uma meta compartilhada que dê sentido às dificuldades cotidianas", escreveu o jornalista Daniel Matamala.
Além disso, é importante lembrar que Piñera foi reconhecido por sua "capacidade de gerar empregos e melhorar a economia". De fato, durante seu primeiro governo, essa foi sua grande conquista.
Desta vez, as pessoas ansiavam o mesmo e, até agora, a realidade econômica ficou abaixo das expectativas da sociedade chilena.
"Havia duas promessas: melhoras econômicas e paz para os cidadãos. Essas foram as chaves desse governo", explica Claudio Fuentes.
O acadêmico acrescenta que "o crescimento econômico foi menor. E, sobre a segurança pública, acaba de sair um relatório que mostra um aumento na percepção de insegurança por parte da população. Tudo isso afeta esse clima de inconformismo".
4. Qual é o papel dos estudantes nas manifestações?
Os recentes protestos foram liderados principalmente por estudantes.
A primeira manifestação ocorreu na segunda-feira, 7 de outubro, liderada por estudantes de escolas emblemáticas, principalmente do Instituto Nacional. Este estabelecimento, fundado em 1813, foi o ponto central de organização de protestos.
As reclamações têm a ver com a "falta de recursos" para a educação chilena e precariedade nas salas de aula.
Segundo Carlos Peña, reitor da Universidade Diego Portales, os excessos que ocorreram nos últimos dias no Chile são resultado, em parte, do surgimento de uma nova geração "que se manifesta com crescente intensidade", disse ele ao jornal El Mercurio.
"Não é por acaso que todas essas formas de protesto violento são realizadas por jovens", acrescenta.
Uma das manifestações mais importantes no Chile desde o retorno à democracia também foi liderada por estudantes. A chamada "revolução dos pinguins", ocorrida em 2006, gerou um precedente importante em relação à demanda social para melhorar a educação no país sul-americano. O nome "pinguim" é uma referência aos uniformes escolares usados no Chile.
Então, em 2011, essa demanda cresceu e o movimento estudantil também provocou grandes protestos, pressionando o primeiro governo de Piñera.
Embora não se saiba qual será a verdadeira dimensão das atuais manifestações, os últimos dias podem ser classificados com um dos momentos mais violentos que o Chile viveu em décadas.
Apenas algumas semanas atrás, e após crises parecidas no Peru e no Equador, muitos diziam que o país sul-americano era um "oásis" na América Latina.
Agora, a situação mudou abruptamente e ninguém sabe se a "fúria" popular vai continuar.
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 21 de outubro e atualizada em 23 de outubro
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