A acusação de assassinato que revelou o mundo dos fuzileiros navais de elite dos EUA
O secretário da Marinha americana, Richard Spencer, foi demitido no domingo (24/11) pela forma como lidou com o caso de Eddie Gallagher, um oficial que integrava a força de elite da Marinha, a chamada Navy Seals, e foi acusado de cometer crimes de guerra no Iraque.
Gallagher foi acusado por outros membros dos Seals de torturar e matar um adolescente e atirar em civis aleatoriamente enquanto estava em serviço no Iraque, em 2017.
O caso tem gerado tensões entre o presidente Donald Trump e oficiais militares desde que o presidente defendeu o fuzileiro publicamente.
Contrariando o Conselho de Oficiais de Defesa, Trump reverteu a punição a Gallagher e deu a entender que não permitiria que ele perdesse seu status de membro da Marinha.
As tensões entre o presidente e os militares cresceram a ponto de o secretário da Marinha deixar seu cargo. Houve diversas versões sobre o que levou à sua saída.
O secretário de Defesa, Mark Esper, disse que "perdeu a confiança" no chefe da Marinha porque as conversas privadas dele com a Casa Branca teriam contradito sua postura pública. Spencer teria dito à presidência que, se a Casa Branca não interferisse no julgamento, ele garantiria que Gallagher teria o direito de se aposentar como militar.
Foto ao lado de cadáver
Trump disse que não estava feliz com a forma como Spencer lidou com o julgamento de Gallagher e com um "excesso" do secretário, dando a entender que ele foi demitido.
Em um julgamento em julho, Gallagher não foi considerado culpado dos assassinatos, mas foi condenado por um delito menor: posar em uma foto ao lado do corpo de um combatente do Estado Islâmico.
Em um carta enfática, Spencer disse que aparentemente Trump e ele não tinham as mesmas visões sobre "ordem e disciplina". "As vidas de nossos soldados e colegas civis literalmente dependem da execução profissional de nossas muitas missões", disse ele.
"O Estado de Direito é o que nos distingue de nossos adversários", afirmou Spencer. "Boa ordem e disciplina é o que permitiu nossa vitória contra a tirania estrangeira."
O presidente Trump tem recebido muitas críticas de parte dos militares por perdoar soldados e oficiais condenados por crimes de guerra.
Em julho, a jornalista da BBC Tara McKelvey relatou os detalhes o caso de Gallagher, que expôs fissuras e facções dentro da Marinha. Republicamos, abaixo, a reportagem original.
O julgamento de Edward Gallagher trouxe à tona o mundo secreto do sistema Judiciário Militar e do grupo de elite de fuzileiros navais americano, os Navy Seals.
Gallagher, 40, é forte, braços musculosos e bronzeados. Sua mulher, Andrea, seus pais, Melissa e Joe, e seu irmão mais novo estavam sentados atrás dele na Corte.
Diante de todos, um vídeo mostrando um prisioneiro de guerra americano, o único combatente do Estado Islâmico a sobreviver a uma batalha em Mossul, no Iraque, em 2017. O garoto, de 17 anos, tinha um físico tão magro que um relógio de pulso poderia caber nos seus bíceps.
Ele foi levemente ferido na batalha, disse aos jurados o patologista forense Frank Sheridan. Depois da batalha, os iraquianos entregaram o jovem aos Navy Seals para receber atendimento médico no centro militar americano.
Naquela manhã, Gallagher se ajoelhou ao lado do garoto com uma bolsa médica contendo sua faca de caça, um modelo personalizado que tinha um cabo curvado.
Um ano e meio depois, o oficial foi acusado de enfiar a faca no pescoço do garoto, matando-o e posando com seu corpo para uma foto. Ele também foi acusado de atirar em dois civis iraquianos sem motivo — uma garota em um hijab florido e um idoso que caminhava próximo ao rio Tigre.
Os Navy Seals são o grupo de elite da Marinha americana, e são conhecidos por sua lealdade uns aos outros. Então, como um oficial condecorado, considerado herói de guerra, acabou indo parar nessa posição?
Faca de caça
Preso em setembro do ano passado, Gallagher não era qualquer oficial. Tinha uma ótima reputação, era chefe de operações, recebeu diversas medalhas, inclusive um estrela de prata, uma das maiores honras militares.
Servia há quase 20 anos na Marinha, era especialista em explosivos, em atendimento médico, e um atirador de elite.
Os outros integrantes dos Navy Seals que o acusaram disseram que, quando eles foram alocados no Iraque em 2017, ele começou a ter um corportamento muito estranho. Passava a maior parte do tempo isolado em um posto de vigia, de onde, disseram, atirava em civis sem motivo.
A região, apesar de ser uma zona de guerra, tinha muitos civis. Gallagher foi acusado de tentar matar ao menos dois deles.
Então, em maio de 2017, quando seus colegas já estavam bastante preocupados com seu comportamento, algo mais grave aconteceu, disseram eles. As tropas americanas estavam ajudando as forças iraquianas a retomarem a cidade de Mossul de combatentes do grupo extremista Estado Islâmico.
Um dos colegas de quarto de Gallagher testemunhou que, quando ele ouviu que um guerrilheiro do EI estava sob os cuidados do Exército americano, Gallagher disse que queria "tomar conta" dele. "Sai fora, ele é meu", teria dito o oficial, segundo a testemunha.
Os relatos foram corroborados por sete membros do pelotão. Eles disseram que Gallagher inicialmente cuidou do garoto e, depois, o esfaqueou.
Uma das testemunhas, Craig Miller, disse que viu sangue saindo da jugular do menino, "do tipo de jorro que você vê quando um bebê está vomitando". No julgamento, foram apresentadas mensagens de texto que Gallagher enviou para seus amigos, com uma foto do garoto morto: "Boa história por trás disso", ele escreveu. "Peguei ele com minha faca de caça."
Os membros dos Navy Seals que resolveram denunciar o caso enfrentaram resistência de diversos oficiais, que diziam para que eles deixassem a história de lado, segundo uma investigação obtida pelo jornalThe New York Times. Nas primeiras vezes que tentaram trazer o caso ao conhecimento das Forças Armadas, foram alertados por um superior que continuar falando do assunto poderia "custar suas carreiras".
Gallagher foi preso em setembro do ano passado e solto depois do julgamento.
A defesa do militar disse que as acusações eram "mentiras inventadas por jovens membros do pelotão" que odiavam seu estilo "rígido" de liderança. "Ele os pressionava, então eles fizeram isso", disse o irmão dele, Sean, à BBC.
Sean afirma que o irmão, que tinha treinamento médico, estava cuidando do garoto, e fez um corte para liberar suas vias aéreas. Diz também que ele morreu de ferimentos de batalha.
Uma confissão no tribunal
O julgamento de Gallagher foi feito por um júri, composto por sete homens, incluindo um integrante dos Seals. Seis deles eram militares que serviram em guerras. Eles decidiram que Gallagher não era culpado de homicídio pela morte do combatente do Estado Islâmico, nem de tentativa de homicídio da garota e do idoso próximo ao rio.
Mas o consideraram culpado de posar para fotos com o corpo do jovem, o que dará uma pena de diminuição do seu salário e patente. Ele também teria uma pena de 4 meses de prisão, mas como ficou preso aguardando o julgamento, os 4 meses já foram cumpridos.
O julgamento trouxe à tona as divisões e problemas dentro do grupo dos Navy Seals, grupo responsável pelo sucesso de diversas operações, como a morte de Osama Bin Laden e o resgate do capitão Richard Phillips de piratas somalis.
Para muitos, a sentença foi uma surpresa.
Os promotores reuniram mais de mil páginas de provas. Usaram relatos feitos pelo próprio Gallagher sobre supostos crimes, palavras que eles acreditavam revelar sua verdadeira natureza: um homem capaz de grande crueldade, alguém que violava os valores americanos. Além disso, se basearam relatos de sete testemunhas. Como pode um caso tão forte ter sido perdido?
Os investigadores foram até o Iraque coletar provas, mas não conseguiram encontrar o corpo do prisioneiro de guerra e não havia nenhum DNA ou outra prova dele, o que se mostrou um problema durante o julgamento.
Mas o momento mais dramático foi quando uma testemunha, o militar Corey Scott, disse que foi ele mesmo — e não Gallagher — quem matou o garoto. Segundo Scott, Gallagher esfaqueou o jovem, mas foi o próprio Scott quem o asfixiou para que ele não tivesse de voltar ao EI, onde provavelmente seria maltratado após ter sido prisioneiro de guerra americano.
Muitas pessoas no tribunal estavam céticas quanto ao depoimento. Depois que Scott deu seu depoimento, ele olhou para Gallagher e disse que não queria que ele passasse o resto de sua vida na cadeia. Scott acreditava ter imunidade no julgamento, por isso sentiu que podia falar sobre o assassinato.
Uma fonte disse à BBC que os promotores e os advogados de defesa sabiam que uma testemunha poderia confessar o assassinato. Ao ouvir o depoimento de Scott, um dos promotores pulou de sua cadeira e o acusou de mentir.
Disputas internas
Meses antes do julgamento, o presidente Trump publicou uma mensagem no Twitter falando sobre o "serviço de Gallagher ao país" e indicou que poderia dar a ele um perdão presidencial. O interesse do presidente fez com que o oficial tivesse acesso a advogados famosos, como Marc Mukasey, que também defende as empresas de Trump.
Um deputado republicano da Califórnia, Duncan Hunter, também defendeu Gallagher, dizendo que ele era um "combatente de guerra que fez a coisa certa".
Mas para muitos dos homens que serviram com Gallagher, no entanto, ele era como o personagem do livro O Médico e o Monstro, um líder condecorado que se tornou um assassino em Mossul.
A lealdade entre os integrantes dos Navy Seals é algo valorizado acima de tudo, e a decisão de denunciar um oficial não tem precedentes, segundo o jornal Navy Times.
O julgamento submeteu o agrupamento de elite a um raro escrutínio. E revelou divisões internas dos Navy Seals.
Segundo relatos da mídia americana, há uma divisão entre dois grupos dentro do corpo de elite da Marinha: os autointitulados "piratas" e os chamados "escoteiros".
Os "piratas" seriam um grupo que defende as ações de Gallagher e acredita que os soldados deveriam ter carta branca para agir, sem supervisão. Já os "escoteiros" defendem que supervisão e uma estrita adesão às regras e ao código de ética é essencial para o sucesso das missões.
Corte marcial
Gallagher cresceu em uma família militar com raízes irlandesas. Seu pai, Joe, se formou em 1972 na Academia Militar de West Point, a faculdade militar de maior prestígio, e serviu no Exército americano. A família morou em Pequim no início dos anos 1980 e depois no Estado americano de Indiana, onde seu pai trabalhava para uma empresa de defesa.
Edward Gallagher frequentou um colégio católico e era "cavalheiro", segundo sua amiga Jessica Zimmerman. "O tipo de cara que segura a porta para você."
No Iraque, Gallagher era conhecido por um temperamento agressivo, que era admirado por alguns homens. Mas incomodava outros.
O seu julgamento foi em San Diego, cidade conhecida por ser mais conservadora e por ter uma base da Marinha. A cidade tem cerca de um milhão e meio de pessoas, com uma das maiores concentrações de famílias militares e veteranos.
Nesse mundo patriótico, os Seals são conhecidos por seu comprometimento à nação e uns aos outros.
Comandantes da Marinha têm aumentado cada vez mais medidas administrativas para punir oficiais de grupos de elite em vez de levarem os casos à cortes militares. O número de Cortes marciais na Marinha caiu na última década, indo de 750 em 2008 para 280 em 2017, segundo o jornal Military Times.
Em um dos julgamentos, um integrante dos Seals se declarou culpado de estrangular até à morte um sargento enquanto eles estavam em uma missão secreta no Mali. Em maio deste ano, um soldado da Guarda Nacional que matou um prisioneiro de guerra afegão foi absolvido e hoje fala com remorso sobre a morte do homem.
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