Banco Mundial: Brasil precisa priorizar as quase 1 milhão de famílias vivendo na pobreza sem Bolsa Família
Em fevereiro de 2017, um estudo divulgado pelo Banco Mundial defendia que o Brasil precisava aumentar seus gastos com o programa Bolsa Família para evitar que milhares de novas famílias passassem a viver na pobreza durante a recessão econômica, quando milhares perderiam seus empregos. A previsão se mostrou correta: no mês passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou que, em 2018, chegou a 13,5 milhões o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da extrema pobreza - 4,5 milhões a mais que em 2014.
Na definição global do Banco Mundial, é considerado em situação de extrema pobreza quem dispõe de menos de US$ 1,90 por dia, o que equivale a aproximadamente R$ 140 por mês. Já a linha de pobreza é de rendimento inferior a US$ 5,5 por dia, o que corresponde a cerca de R$ 406 por mês.
Esta semana, os números mostraram mais uma evidência do retrocesso social: em 2018, o país o caiu uma posição no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), referência mundial em medida de bem-estar da população.
Responsável por coordenar os programas de desenvolvimento humano do Banco Mundial para o Brasil, o argentino Pablo Acosta defende que, quase três anos depois do alerta, o governo precisa priorizar o socorro às famílias que vivem na pobreza, mas ainda não foram atendidas com o benefício.
"Há quase 1 milhão de famílias, não temos o número exato, mas quase um milhão de famílias que se qualificam para o Bolsa Família, mas ainda não estão no programa. E a razão principal isso é porque havia um orçamento fixado no começo do ano e não se pode permitir que mais gente entre. Então, uma das recomendações, não apenas nossa, mas de muitos outros, é de que realmente precisamos priorizar incluir essas famílias no programa, porque elas são elegíveis", afirmou Acosta, doutor em Economia e especialista em proteção social e mercado de trabalho.
Na visão do Banco Mundial, em períodos difíceis para a economia, as políticas redistributivas como os programas de transferência de renda se revelam ainda mais importantes. O Bolsa Família atende às famílias que vivem com renda per capita de até R$ 89 mensais, e com renda entre R$ 89,01 e R$ 178 mensais. De acordo com o Ministério da Cidadania, em setembro, o programa atendeu 13,5 milhões de famílias, somando um valor total de R$ 2,5 bilhões. O benefício médio foi de R$ 189,21.
Pelas regras do banco, é missão da entidade trabalhar diretamente com o governo de cada país membro; por esse regulamento, o ministro da Economia é o governador responsável pelo seu país no conselho de diretores do Banco Mundial, o que exige interação constante entre os técnicos em reuniões e encontros, explica Acosta.
"Tudo o que fazemos é dedicado a apoiar a economia e o desenvolvimento do país, e isso requer constantes discussões e interações em diferentes níveis de poder, não só em nível federal, mas também com alguns Estados e municípios".
O executivo elogia que, de uns tempos para cá, a pauta social tenha crescido no debate político, tanto em iniciativas do Executivo quanto trazidas pelo próprio Congresso.
E diz que, para se tornar uma economia rica, o Brasil precisará priorizar o investimento nas pessoas, em especial para educar melhor os jovens para serem trabalhadores mais produtivos. Mais que reduzir o custo para a contratação, como prevê o programa Verde Amarelo, lançado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, é preciso melhorar a qualidade da educação e dar mais treinamento para que eles consigam lugar no mercado de trabalho.
"Acreditamos que é um dos fatores mais importantes, ter uma população educada e um trabalho produtivo. E isso, basicamente, é investir em pessoas".
Leia os principais trechos na entrevista:
BBC News Brasil - Em 2017, um estudo do Banco Mundial defendia um aumento do orçamento do Bolsa Família para evitar o crescimento da pobreza. Como veem o crescimento da pobreza desde então?
Pablo Acosta - Basicamente segundo os últimos dados de 2018, a pobreza, infelizmente, continuou em uma tendência de alta. Claro que não é uma surpresa, houve uma recessão severa no Brasil nos últimos três anos, e é isso que acontece normalmente. Se qualquer país no mundo sofre esse particular declínio na atividade econômica, a pobreza tende a crescer.
Nossa análise mostra que os números de pessoas na pobreza não ainda estão nos níveis de 2014, antes da recessão, mas ao menos no ano passado estamos mandando menos pessoas para a pobreza do que em 2017.
Em 2018 houve esse aumento leve na pobreza, na que é associada com o US$ 1,9 dólar por dia [definição de pobreza extrema para o Banco Mundial]. Mas dá para ver algumas boas notícias na outra linha de pobreza, entre os que vivem com US$ 5,5 dólar por dia, houve um leve declínio em 2018. Talvez estejamos vendo finalmente a luz no fim do túnel.
BBC News Brasil - Mas o senhor acha que esse crescimento da pobreza era inevitável por causa da recessão? Eu tinha a impressão, pela recomendação do banco Mundial em 2017, que se alguns passos fossem tomados, poderíamos evitar parte desse aumento da pobreza.
Pablo Acosta - Primeiramente precisamos entender o que causou o aumento da pobreza. O que aconteceu basicamente foi a perda de renda, a perda de oportunidades de gerar renda para grande parte da população, que é o que acontece durante uma recessão. E você teve uma recuperação lenta, considerando que o nível de desemprego é alto e não está caindo rápido, o que poderia ajudar a melhorar o impacto sobre a pobreza.
Entre aqueles que estão mais afetados estão os pobres, e isso explica porque a pobreza cresceu. Sim, no artigo de 2017 nós argumentamos que havia políticas de proteção social como, por exemplo, o programa Bolsa Família, que poderiam ter melhorado isso um pouco.
Lembrando que o Bolsa Família é um programa de transferência de renda que pode prover alívio temporário, mas não está necessariamente lidando com os problemas do mercado de trabalho.
Para responder sua pergunta: sim, isso poderia ter sido mais mitigado durante a recessão. Isso na verdade aconteceu na recessão de 2008 e 2009, que não era tão severa quanto a de 2015 e 2016. Mas naquela época o governo aumentou a cobertura do Bolsa Família, aumentou o benefício temporariamente e isso ajudou a limitar o impacto na pobreza. Neste caso, por razões diferentes, inclusive a questão fiscal, é claro, que provavelmente explicaria porque não pudemos usar esses mecanismos de proteção social como antes.
BBC News Brasil- Alguns dados indicam que o número de beneficiários parece estar diminuindo durante a crise, embora o número de pobres tenha aumentado. O governo também diz que aumentou a fiscalização contra fraudes e um fez um pente-fino nos cadastros.
Pablo Acosta - É preciso ressaltar que o programa Bolsa Família é muito dinâmico. A ideia é que em qualquer período de tempo há pessoas que devem estar saindo do programa, porque entram e saem da linha de pobreza, não é necessariamente por fraude. Há pessoas que melhoram sua condição financeira e deveriam sair do programa. Então o que vimos é uma leve redução, não somente em razão de fraudes, mas também por famílias que sairiam naturalmente do Bolsa Família porque não têm mais crianças na idade alvo do programa, que é até 18 anos. Uma saída natural, as pessoas não se tornam mais elegíveis. E é por isso que você vê um leve declínio na cobertura.
A questão foi, e aí que entramos nos aspectos mais fiscais, é que quando eles estavam preparando o orçamento, eles não estavam contando com a possibilidade de mais famílias entrarem [no Bolsa Família].
BBC News Brasil - Mas foi sobre isso que o Banco Mundial havia alertado, não?
Pablo Acosta - As famílias se qualificam para receber o Bolsa família quando elas caem abaixo da linha da pobreza. E você tem uma situação hoje, que vocês chamam de fila no Brasil, em que há muitas centenas de famílias, não temos o número exato, mas há quase um milhão de famílias, que poderiam se qualificar para o Bolsa Família, mas não estão ainda no programa. E a razão principal isso é porque havia um orçamento fixo, no começo do ano, e não se pode permitir mais gente a entrar. Então uma das recomendações, não apenas do Banco Mundial, mas de muitos outros, é de que realmente precisamos priorizar incluir essas famílias no programa porque são elegíveis. E isso, claro, requer mais recursos para acomodá-las.
BBC News Brasil - Como vê o efeito das medidas econômicas discutidas este ano em relação à pobreza? Reforma da Previdência, programa de emprego para jovens, reoneração da cesta básica, por exemplo. O senhor tem acompanhado?
Pablo Acosta - Primeiro de tudo, a reforma da Previdência era uma medida muito necessária para tornar as contas públicas mais sustentáveis no país. Quando há um déficit como o existente, você tem muito pouco espaço para políticas sociais, então concordamos foi uma medida muito importante.
Nós também temos notado medidas propostas pelo Executivo, algumas levadas pelo Congresso, estamos agora vendo um crescente movimento de medidas sociais, acho que o governo está tentando abordar isso. Uma das causas originais da pobreza é o declínio na renda, pelo desemprego. E isso, claro, atinge especialmente os jovens. E é uma das principais razões pelas quais eles estão propondo esse programa de emprego para jovens, tentando reduzir os custos e reduzir o desemprego.
E, em relação ao Bolsa Família, há muitas propostas sendo discutidas no Congresso. O ministério da Cidadania também tem falado em introduzir mudanças ao programa para que mais pessoas possam entrar e há componentes, por exemplo, relacionados a financiar creches para crianças. Há movimentos tanto do governo, quanto do Congresso. Eles querem atacar esse assunto, especialmente para superar esse impacto negativo que a crise teve.
BBC News Brasil - E o senhor acha que as propostas vão na direção correta? O do programa de emprego para jovens, por exemplo?
Pablo Acosta - O Brasil não é o primeiro a tentar esse tipo de intervenção. O programa trata de uma parte do problema, que é o alto custo para os empregadores de empregar um jovem. E isso tem mais relevância para a juventude, porque os jovens tendem a ter mais dificuldades para encontrar emprego, em geral. Então é por isso que o governo está tentando reduzir o custo da contratação. Eu diria que vai na direção correta, mas ao mesmo tempo, dada a complexidade da questão, é preciso complementá-lo com outras medidas alternativas.
BBC News Brasil- Que tipo de medidas?
Pablo Acosta - Uma das razões pelas quais você tem desemprego alto é o custo alto, mas a outra é a baixa produtividade. E isso, claro, países têm tomado muitas medidas. A qualidade da educação ainda é um grande desafio no Brasil, precisamos continuar a melhorar a qualidade e relevância da educação.
BBC News Brasil- A baixa produtividade é uma barreira ao emprego dos jovens?
Pablo Acosta - Geralmente eu diria que a baixa produtividade reduz a probabilidade de ser contratado. Basicamente o que estamos dizendo é que alguns jovens têm dificuldades de se inserir ou se reinserirem no mercado de trabalho porque as habilidades deles não estão totalmente desenvolvidas ainda.
Há aspectos relevantes da qualidade de educação. Um documento recente do Banco Mundial, o Learning Poverty, mostra que quase 50% das crianças de dez anos de idade não conseguem, por exemplo, compreender um texto simples. E também há os dados do Pisa que mostram que 68% dos estudantes brasileiros (contra 2% nas cidades chinesas medidas no Pisa) não conseguem "interpretar e reconhecer como uma situação simples pode ser representada matematicamente". O país está tentando complementar isso com oportunidades de treinamento, e isso poderia ajudar a elevar a produtividade e ajudar os jovens a se inserirem no mercado de trabalho.
BBC News Brasil - Além de reduzir o custo do emprego, deveria haver um programa de educação?
Pablo Acosta - Deveria haver uma série de medidas todas apontando para a mesma direção: como preparar melhor os mais jovens para o mercado de trabalho para que eles possam entrar mais rapidamente e, ao mesmo tempo reduzir o custo de contratar um jovem. Esperamos que a segunda parte continue na agenda, o que também poderia ajudar o mercado de trabalho.
BBC News Brasil- E as mudanças em discussão para o Bolsa Família? Vão na direção correta?
Pablo Acosta - Todas apontam para a mesma direção, no sentido de como aumentar a relevância do Bolsa Família para mais pessoas, e vêm com um diagnóstico de que a redução da pobreza pode ser acelerada. Há muitos caminhos para fazer isso, há muitos debates, e não escolhemos necessariamente um ou outro, mas basicamente você vê propostas que variam de fazer o Bolsa Família um tipo de programa universal, onde cobre a maioria das crianças, e ao mesmo tempo reformando benefícios que são ineficientes e podem ser realocados para o Bolsa Família.
O outro caminho é trabalhando para aumentar o tamanho do benefício também a cobertura de 18 para 21 anos. É preciso ver como essas políticas vão impactar na pobreza, discutir qual será o custo, porque há impactos de custos que são diferentes em cada proposta. Vamos analisar os diferentes cenários e ainda não temos uma posição. Mas valorizamos esse debate, que é importante, particularmente reconhecendo que o programa Bolsa Família continue relevante no Brasil e possa ser fortalecido e ter mais recursos.
Sabemos que o Bolsa Família é um programa poderoso, porque já foi avaliado, tem impacto no desenvolvimento humano. E internacionalmente, comparado com outros países que têm esse tipo de intervenção, custa 0,5% do PIB, o que é um gasto normal para um país do nível de desenvolvimento do Brasil, com um impacto ambicioso sobre a pobreza. É razoável. É um programa que já foi consistentemente avaliado, muitos estudos foram feitos sobre os impactos positivos.
BBC News Brasil- A produtividade do Brasil não cresce há décadas. A baixa produtividade é um problema também para a economia?
Pablo Acosta - É um problema crucial. Quando falamos sobre quais as perspectivas para o Brasil, não só para se recuperar da crise, mas também para continuar a crescer no longo prazo. O Brasil é uma economia que pretende se tornar um país rico. Um dos principais ingredientes para isso é melhorar a produtividade. Os dados mostram que a produtividade tem sido baixa há um longo tempo, é uma tendência antiga, de antes da crise. E requer diferentes políticas, macropolíticas que estimulem a criação de empresas, inovação.
E uma área que me preocupa mais, e à qual damos muita atenção, é em como preparar melhor a força de trabalho. Os aspectos de investir em pessoas, investir em capital humano. Outro indicador do Banco Mundial, que chamamos de Human Capital Index, mostra que, na idade de 18 anos, as crianças só atingem 56% de seu potencial máximo de produtividade. [De acordo com o indicador, ela terá só 56% da produtividade que poderia ter se tivesse tido acesso completo a educação e saúde. Em Singapura, que lidera esse ranking de 170 países, esse percentual é de 100%].
E isso é uma medida que inclui aspectos de saúde e educação, nutrição, o que mostra que há problemas em todas essas dimensões. Na qualidade de educação é a lacuna mais relevante, especialmente no ensino fundamental, que é um grande desafio em termos de qualidade.
Outro aspecto importante é que, no caso do Brasil, um relatório mostra diferenças especiais. Em algumas cidades do Sudeste, esse número de produtividade é de 70%; no Nordeste, ou no Norte, esse percentual é de 45%. Há enormes discrepâncias que mostram a desigualdade no Brasil. Que, novamente, se explicam por investimentos na infância. No longo prazo, vemos que um dos objetivos é aumentar a produtividade dos jovens quando eles chegam ao mercado de trabalho.
BBC News Brasil - E por que falhamos tanto em preparar nossos jovens?
Pablo Acosta - O principal é a qualidade da educação. Em alguns outros países, o problema principal é a nutrição. No Brasil não é a maior preocupação, embora haja regiões do Brasil em que isso ainda é uma preocupação. No geral, a qualidade da educação, mais que o acesso, é o problema. Podemos fazer outra entrevista se quisermos discutir isso a fundo, mas o banco vem trabalhando muito em educação para ajudar a elaborar políticas públicas. Há partes do Brasil muito bem-sucedidas em melhorar o aprendizado, como Sobral, no Ceará. Mostra que dá para fazer.
BBC News Brasil - Considerando que continuemos a falhar em aumentar a produtividade dos jovens, que riscos vê para o futuro do Brasil?
Pablo Acosta - Eu acho que, pelas discussões que temos, o governo está muito consciente desse problema e vai atacá-lo. Mas claro que o risco de não aumentar a produtividade, especialmente nessa situação de desemprego entre jovens, vai continuar limitando o PIB e o crescimento da renda, e pode comprometer as perspectivas do Brasil. São retornos que vão compensar muito no longo prazo, mais que investimentos físicos. Investir nas pessoas, na educação, compensa muito. Esperamos que continuemos nessa tendência de políticas inovadoras para crescer. Para que não só se recupere da crise, mas que olhe no longo prazo, perspectivas de crescimento para que o país se torne um país de alta renda. Acreditamos que é um dos fatores mais importantes para isso, ter uma população educada e um trabalho produtivo. E isso basicamente é investir em pessoas.
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