Coronavírus: por que a população negra é desproporcionalmente afetada nos EUA?
Segundo especialistas, as disparidades são resultado de desigualdades estruturais que fazem com que comunidades negras no país fiquem mais suscetíveis ao contágio.
Dados divulgados nos últimos dias por diversos estados americanos revelam uma tendência que vem preocupando — apesar de não surpreender — especialistas em saúde pública: a população negra nos Estados Unidos registra taxas desproporcionalmente altas de infecção e mortalidade pelo novo coronavírus.
Segundo especialistas, as disparidades são resultado de desigualdades estruturais que fazem com que comunidades negras no país fiquem mais suscetíveis ao contágio e tenham mais chances de desenvolver formas graves da covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
Enquanto as autoridades recomendam ficar em casa e seguir medidas de distanciamento social para reduzir o risco de contágio, muitos americanos negros atuam em profissões consideradas essenciais e nas quais não é possível trabalhar de casa — como motoristas de ônibus ou funcionários de supermercados —, fazendo com que tenham de usar transporte público e passar o dia em contato com outras pessoas.
A população negra nos Estados Unidos também tem taxas altas de obesidade, diabetes, hipertensão e asma, que são consideradas fatores de risco para desenvolver formas graves de covid-19. Além disso, muitos americanos negros não têm plano de saúde.
Na semana passada, o presidente Donald Trump e membros da força-tarefa criada pela Casa Branca em resposta ao novo coronavírus reconheceram as disparidades.
"Estamos confrontando ativamente o problema do impacto elevado — este é um problema real e está aparecendo de maneira muito forte em nossos dados — na comunidade afro-americana", disse Trump em coletiva de imprensa.
"Estamos fazendo tudo que podemos para responder a esse desafio. É um desafio temendo. É horrível", afirmou o presidente.
Dados estatísticos
No Brasil, dados do Ministério da Saúde apontam que as hospitalizações de pretos e pardos com síndrome respiratória aguda grave representam 23,1% do total, mas as mortes dessas parcelas da população somam 32,8%.
Nos EUA, ainda não há números oficiais relativos ao país inteiro, já que muitos estados e cidades não divulgam a etnia dos pacientes infectados e mortos pelo novo coronavírus.
Mesmo nos estados que divulgam esses dados, há limitações, porque em nem todos os casos há informações.
Mas mesmo esse retrato parcial indica grandes disparidades no impacto do coronavírus e foi recebido com alarme por autoridades e profissionais de saúde. Até o domingo (12/04), os Estados Unidos já registravam mais de 560 mil casos e 22 mil mortes.
"[Os números] estão entre as coisas mais chocantes que já vi como prefeita", disse Lori Lightfoot, a primeira mulher negra a comandar a cidade de Chicago, ao divulgar os dados de sua cidade.
Em Chicago, 30% dos moradores são negros. Mas metade dos casos confirmados e 70% das mortes relacionadas ao coronavírus são de pacientes negros. Os números refletem desigualdades históricas na cidade, onde moradores negros têm expectativa de vida 8,8 anos menor que a dos brancos.
Em todo o estado de Illinois (onde fica Chicago), apenas 15% da população é negra, mas 35% dos casos e 40% das mortes foram de pacientes negros.
No estado vizinho de Michigan, 14% da população é negra, mas um terço dos casos e 40% das mortes são de pacientes negros. A governadora, Gretchen Whitmer, criou uma força-tarefa para responder a essas disparidades raciais.
Grandes disparidades também são registradas no estado de Wisconsin. No condado de Milwaukee, onde 26% da população é negra, pacientes negros representam metade dos casos confirmados e 81% das mortes.
No estado da Louisiana, 32% da população é negra. "Um pouco mais de 70% das mortes [por covid-19] na Louisiana são de afro-americanos", disse o governador John Bel Edwards em entrevista coletiva na semana passada.
"Isso merece mais atenção, e nós teremos de ir a fundo para ver o que podemos fazer para desacelerar isso", afirmou Edwards.
Na cidade de Nova York, os negros representam 22% da população, mas dados preliminares indicam que são 28% das vítimas. Calcula-se que pelo menos 40% dos trabalhadores no setor de transportes da cidade sejam negros. Na capital americana, Washington, 60% das mortes até agora foram de pacientes negros, apesar de apenas 46% dos residentes serem negros.
Na semana passada, o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) divulgou dados hospitalizações devido ao coronavírus em 14 estados americanos durante todo o mês de março.
Apesar de moradores negros representarem apenas 18% da população na área geográfica analisada, eles responderam por 33% das hospitalizações.
Desigualdades
"Esse padrão [de disparidade] não é surpreendente, dado o que sabemos, [em termos de] discriminação, diferenças em condições de saúde, todas essas coisas que já existem [antes da pandemia]", diz à BBC News Brasil a professora Courtney Cogburn, da Escola de Serviço Social da Universidade Columbia, em Nova York.
"O que é mais impressionante é o grau de diferença, que acho que é muito maior do que qualquer um poderia prever", ressalta Cogburn, que lidera um grupo de pesquisas sobre os efeitos do racismo na saúde física e mental.
Inúmeros estudos demonstram que, em comparação com a população branca, americanos negros têm mais chance de não ter plano de saúde e de morar em áreas em que o atendimento de saúde é escasso e caro.
Muitos vivem em áreas onde não há mercados que vendam frutas ou verduras, o que prejudica sua dieta e pode levar a problemas como obesidade e outras doenças crônicas.
O acesso desigual a saúde e oportunidades econômicas é considerado um fator crucial nas altas taxas de doenças crônicas nessa população que, por sua vez, faz com que sejam mais suscetíveis aos efeitos da covid-19.
"Como costuma ocorrer nesse tipo de disparidade em saúde, não é um único fator, mas acontece em cada estágio [desde risco de infecção até o resultado da hospitalização]", diz à BBC News Brasil o epidemiologista social Jon Zelner, professor da Escola de Saúde Pública da Universidade de Michigan.
"Acho que é um fenômeno em grande parte ligado a status socioeconômico e também racismo estrutural", afirma Zelner, que estuda fatores sociais e biológicos que afetam riscos de doenças infecciosas.
Acesso a testes
Segundo Cogburn, dados preliminares indicam que muitos pacientes negros não tiveram acesso a testes e foram mandados de volta para casa quando procuraram clínicas e hospitais com sintomas de covid-19.
"Estamos tentando entender melhor se diferenças [raciais] no acesso a testes tiveram um papel [nas disparidades]", destaca.
Vários estudos acadêmicos indicam que há preconceito implícito no sistema de saúde americano, o que faria com que pacientes negros sejam tratados de maneira diferente do que pacientes brancos.
Zelner afirma que, quando a fase aguda da pandemia passar, o acesso a testes terá importância ainda maior.
"Se essas disparidades no acesso a testes permanecerem, teremos um grande problema, porque a transmissão será mais controlada em alguns grupos do que em outros."
No início do mês, quando o CDC passou a recomendar que todos usem algum tipo de máscara — mesmo improvisada — em público, para dificultar a transmissão do vírus, chamou a atenção nas redes sociais o desconforto com a medida manifestada por muitos americanos negros.
"Negros, e particularmente homens negros, têm grande preocupação de parecerem uma ameaça", observa Cogburn.
Nos últimos anos, houve vários episódios nos Estados Unidos em que negros foram alvo de preconceito por parte de policiais e de cidadãos comuns, desconfiados de que poderiam estar envolvidos em alguma atividade ilícita. Em alguns casos, esses encontros foram fatais, com cidadãos negros desarmados mortos pela polícia.
"Enquanto eu encorajo as pessoas a seguirem as regras do CDC, crianças de cor devem estar preparadas para o preconceito que irão enfrentar fora de suas casas", tuitou o presidente do Conselho Municipal de Columbus, em Ohio, Shannon Hardin.
Conclusões
Cogburn salienta que são necessários mais dados para que se possa tirar conclusões definitivas sobre o impacto da covid-19 na população negra.
Um grupo de senadores, médicos e entidades de defesa de direitos civis enviou pedido ao governo federal para que divulgue dados mais completos sobre as disparidades raciais, permitindo assim uma resposta mais eficaz ao problema.
"Quando mais dados estiverem disponíveis, [as disparidades] podem ser ainda mais drásticas, porque há muitas pessoas que não foram testadas e morreram em casa", afirma Cogburn.
Zelner ressalta que é importante não estigmatizar as pessoas afetadas pela covid-19. "Me preocupa que, nessa discussão sobre disparidades, algumas pessoas fiquem com a ideia [equivocada] de que, de alguma maneira, há uma relação [biológica ou comportamental] entre ser negro [e ser afetado]", afirma.
"Acho importante que as pessoas lembrem que a questão aqui não é raça, mas é racismo."
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