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Por que o Canal do Panamá está ficando sem água

Quase 6% do comércio mundial trafegam pelo canal do Panamá - AFP
Quase 6% do comércio mundial trafegam pelo canal do Panamá Imagem: AFP

Da BBC

19/05/2020 08h15

Uma ponte entre dois oceanos, uma brecha de água que divide a América em dois, um cinturão de concreto no ponto mais estreito do continente.

Por mais de um século, o Canal do Panamá, uma das maiores obras de engenharia latino-americana do século 20, tem sido a rota mais curta entre os dois maiores oceanos do mundo.

Por ele passam quase 6% do comércio mundial: a cada ano, mais de 12 mil embarcações cruzam de um lado ao outro suas mercadorias e passageiros envolvendo mais de 140 rotas e 160 países.

Mas a via artificial aberta entre os oceanos Pacífico e Atlântico em 1914 sofre desde o ano passado uma de suas piores crises naturais e não tem ver a ver com os esforços para manter seu funcionamento em tempos de coronavírus: está faltando água.

Segundo comunicado em janeiro da Autoridade do Canal, órgão público que o administra, uma queda de 20% das chuvas em 2019 colocou em xeque o complicado mecanismo de eclusas que move navios de um oceano para o outro. Foi o quinto ano mais seco em sete décadas.

"Tivemos um ano extremamente seco e isso nos levou a implementar várias medidas para garantir a conservação dos recursos hídricos", explica Carlos A. Vargas, vice-presidente de água e meio ambiente do Canal do Panamá, à BBC Mundo (serviço da BBC em espanhol).

Desde o ano passado, as autoridades do canal reduziram a quantidade de embarcações que atravessam todos os dias como medida para economizar água, além de reduzir o calado máximo dos navios que poderiam atravessá-lo.

A partir de fevereiro, as embarcações que passam por ali também devem pagar pela água doce que consome: uma tarifa fixa de até US$ 10 mil (depende do tamanho do barco) e uma variável em relação ao nível do lago ligado ao canal no dia da travessia.

Lago artificial Gatún tem sofrido com a queda no volume de chuvas - AFP - AFP
Imagem: AFP

Segundo afirmou a Autoridade do Canal à BBC Mundo, no início de maio, a estratégia dava sinais positivos e o nível de água do lago que permite o funcionamento do canal havia dado margem a um aumento dos calados dos navios que transitam ali.

No entanto, às vésperas da estação das chuvas, os meteorologistas panamenhos ainda não conseguem chegar a um acordo sobre o que esperar para este ano: se as chuvas facilitarão a tarefa ou se a seca predominará novamente.

Mas como um canal entre dois oceanos pode ficar sem água?

Como se abastece o canal

Conforme explica o geógrafo e hidrólogo panamenho Gustavo Cárdenas Castillero, um dos diversos problemas técnicos enfrentados pelos engenheiros que construíram o canal é o desnível entre os dois oceanos e a parte terrestre entre eles.

"Para resolver isso, foi criado um sistema de eclusas que usa água doce oriunda de um lago artificial, o Gatún, projetado para lidar com esse desnível", afirma Castillero.

Foi necessário inundar cidades e enterrar montanhas para a construção da barragem, que abrange uma área de mais de 430 km² e que também contribui para o suprimento de água potável em grande parte do país.

"Gatun é a principal porção artificial de água que os navios usam para se mover através do canal, e é o que alimenta as eclusas de água doce", diz Castillero.

No entanto, a passagem de cada navio tem um gasto extraordinário de água doce.

"Gasta-se uma média de 50 milhões de galões de água a cada trajeto completo do Atlântico para o Pacífico através das antigas eclusas", explica Vargas.

Esse volume de água serviria para encher 75 piscinas olímpicas.

Órgão que administra canal afirma que até agora tráfego foi pouco atingido pela recessão em torno da pandemia - AFP - AFP
Imagem: AFP

Em dias normais, passam cerca de 35 embarcações por ali, o que totaliza o equivalente a mais de 2,6 mil piscinas olímpicas diariamente.

Segundo Vargas, esse foi um dos problemas que se buscou resolver com o projeto de novas eclusas para o canal, elaborado no início deste século e concluído há quatro anos.

"Nas novas eclusas, há três pontos que permitem otimizar o uso da água. O canal de navegação ficou mais profundo, a fim de garantir um maior calado, o nível de operação do lago Gatún foi elevado e um sistema de reúso de água, que reduz o consumo em até 60%", explica.

No entanto, mesmo com as novas estruturas, o Panamá gasta quase 30 piscinas olímpicas de água doce por barco.

O lago artificial

Os responsáveis pelo canal estão em alerta desde meados do ano passado por causa dos baixos níveis de chuvas em 2019.

"Neste ano, um dos mais secos que o Panamá já teve, tivemos um El Niño forte e um aumento das temperaturas e da variabilidade das chuvas", comentou Castillero.

Segundo ele, há um outro fator importante: uma "maior transpiração dos corpos de água" que alimenta a vida aquática.

De acordo com um estudo da Autoridade do Canal do Panamá, o nível de temperatura na área da bacia do Canal aumentou entre 0,5º e 1,5ºC, a evaporação dos lagos Gatún e Alhajuela (outra represa do sistem) subiu 10%.

Segundo Vargas, da Autoridade do Canal do Panamá, o déficit de chuvas levou à suspensão da geração de energia hidrelétrica e de auxílios hidráulicos para os navios trafegarem.

Canal em tempos de coronavírus

Segundo a administração do canal, as taxas de consumo de água continuarão sendo cobradas mesmo se os níveis de Gatún se recuperem.

Se o movimento ficar estável em relação aos anos anteriores, os lucros em torno do canal devem subir. Segundo dados oficiais do ano fiscal de 2019, o volume de carga transportada foi recorde (450 milhões de toneladas) e a receita atingiu US$ 3,4 bilhões, a maior desde 1914.

No entanto, há incertezas sobre o impacto da pandemia de coronavírus no tráfego marítimo mundial. Um dos grandes desafios recentes no canal foi sanitário, tentando-se evitar que o contágio da doença se espalhasse entre os funcionários.

Até agora, o único indicador de impacto foi a leve redução do número médio de navios por dia, de 35 para 34.

Resta saber com será daqui pra frente.

"A equipe do Canal do Panamá acompanhará de perto como as cadeias de suprimento se reestruturarão nos próximos meses", afirmou o administrador do canal, Ricaurte Vásquez.

"Quando a pandemia se atenuar, estaremos de olho na consistência com que os governos regulam sua indústria de transporte".