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Por que a morte de um advogado gerou onda de violência inédita na Colômbia

População condena o caso de Javier Ordóñez, 43, morto após levar choques elétricos de policiais - Juan Barreto/AFP
População condena o caso de Javier Ordóñez, 43, morto após levar choques elétricos de policiais Imagem: Juan Barreto/AFP

Daniel Pardo - Correspondente da BBC News Mundo na Colômbia

12/09/2020 19h19

Um terço dos 156 Comandos de Atenção Imediata de Bogotá foram incendiados e destruídos em protestos na capital colombiana nos últimos dias.

Foi em uma dessas unidades policiais, espalhadas pela cidade com o intuito de dar respostas rápidas e direcionadas a ocorrências em determinadas áreas, que, segundo testemunhas e médicos forenses, Javier Ordóñez, um advogado de 45 anos, sofreu nove fraturas no crânio antes de morrer, pouco depois, em um hospital.

Conhecidas entre os colombianos como CAI, esses postos policiais foram criados quando Bogotá era uma das cidades mais perigosas do mundo, em 1987, com o objetivo de monitorar determinadas jurisdições e, segundo a prefeitura, "de estreitar os laços entre a polícia e a comunidade".

Especialistas ouvidos pela BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC, afirmam que o que aconteceu foi o contrário: na percepção dos moradores de Bogotá, sobretudo os jovens, os CAI são focos de abuso, corrupção e tráfico de drogas.

Assim, quando o caso Ordóñez foi noticiado, a indignação da população local se voltou contra a figura dos CAI, especialmente depois do surgimento de versões que diziam que o homem havia sido torturado e da divulgação de um vídeo em que teria havido abuso por parte dos policiais.

Nem mesmo durante os protestos de 2019, que ficaram conhecidos como Paro Nacional, em que morreram quatro pessoas, os protestos desencaderam tanta violência ou a resposta das autoridades foi tão repressiva.

Desta vez, a polícia passou a usar arma de fogo, algo inédito nas últimas décadas, e chegou a se aliar a civis encapuzados para perseguir jovens que havia colocado fogo nas unidades.

Pelo menos 14 pessoas morreram nos enfrentamentos, a maioria jovens feridos por armas de fogo. Centenas de cidadãos e policiais ficaram feridos.

A prefeita da cidade, Claudia López, afirmou na sexta (11/9) que entregou ao governo uma hora e meia de vídeo de "policiais uniformizados e supostos policiais a paisana" vistos "com clareza" disparando indiscriminadamente. Ela afirmou ter 119 denúncias de ataques nesse sentido.

O que dizem autoridades

A polícia e o governo do presidente Ivan Duque anunciaram reformas para evitar abusos, pediram desculpas pelo caso Ordóñez e disseram que graças à política de "tolerância zero" em vigor há atualmente 1.924 processos disciplinares abertos e foram aplicadas sanções a 276 funcionários por abuso de força nos últimos 18 meses.

Em relação ao uso de armas de fogo em manifestações contra civis, as autoridades afirmam que vão investigar e reiteram o rechaço à violência.

"Os policiais só podem usar arma de fogo se forem atacados com arma proporcional", afirmou o secretário de Segurança do município, Hugo Acero.

"Como se vê nos vídeos compartilhados, estão desobedecendo a lei", acrescentou. Na última quarta (9/9), a prefeita de Bogotá havia ordenado que as forças policiais não utilizassem armas de fogo.

Um informe de inteligência da polícia vazado aos meios de comunicação locais aponta que os ataques teriam sido supostamente fruto de uma operação organizada por "grupos urbanos de esquerda subversivos."

Enquanto não há ainda uma versão oficial sobre o que vem acontecendo, olhar para a estrutura da polícia e, mais particularmente, para os CAIs, ajuda a entender o que parece ser a jornada mais violenta de protestos da história recente de Bogotá.

Relação de desconfiança

"Para explicar o que aconteceu com a polícia é preciso explicar o que acontece com as pessoas, porque no dia 9 houve uma explosão espontânea de ambas as partes", afirma Mauricio Albarracín, subdirector da ONG defensora dos direitos humanos Dejusticia.

"As pessoas disseram: 'Não aguentamos mais'", diz ele, fazendo referência à situação causada pela situação econômica, na educação e na segurança que está por trás dos protestos.

É provável, assim, que os policias também tenham chegado a um limite.

"Os policiais sentem que a prefeitura os colocou em uma situação de atrito com a população desde o início da pandemia; sobrecarregaram-nos com tarefas como o cumprimento dos cordões epidemiológicos ou a imposição de multas a quem violasse as normas de distanciamento social", pontua Jorge Mantilla, especialista em segurança que trabalhou no serviço municipal por cinco anos.

Além disso, desde que se aprovou a aposentadoria de policiais com 20 anos de serviço, em 2018, tem acontecido uma fuga de funcionários que reduziu o efetivo em Bogotá de 20 mil para 16,5 mil, conforme os dados oficiais. Foram relaxados os critérios de recrutamento e reduzido o período de capacitação.

Os policiais que enfrentaram os jovens na quarta-feira, então, podem ter a mesma idade dos manifestantes, além dos mesmos problemas para pagar contas e acessar os sistemas de educação e saúde.

"Eles (policiais) sofreram um aumento de pressão e desgaste durante a pandemia. Tiveram que trabalhar mais com menos, porque 20% dos policiais da cidade ficaram em isolamento social quase o tempo todo", afirma Acero, da prefeitura.

Segundo um oficial da corporação, "a polícia se sente abandonada e, em face a este abandono, toma decisões que não estão de acordo com os direitos humanos". Ele falou à reportagem sob condição de anonimato.

Os acontecimentos de quarta-feira não contaram com a presença do esquadrão antimotim Esmad, mas sim de patrulhas especializadas no controle e repressão a criminosos.

"É a primeira vez que a polícia é alvo de um ataque e, diante do descompasso das decisões oficiais com o que ocorre na rua, podem ter surgido expressões de vigilantismo, que são esquadrões da morte, de justiçamento ou até o paramilitarismo ", diz Mantilla.

"Os CAIs", conclui, "geram uma relação de familiaridade entre a polícia e os bandidos, digamos, e como há pouca rotatividade entre eles, a polícia passa a extorquir e revender drogas e isso aumenta o cinismo jurídico, que é um sentimento de que o CAI, em vez de fornecer segurança, é uma ameaça (à população). "

Enquanto a polícia se sente abandonada e desgastada, os CAIs são vistos pelos jovens de Bogotá como uma fonte de crimes e repressão. Uma diferença de ponto de vista que só pode ter um resultado: violência.