O que descobri após ler todos os livros 'reveladores' sobre Trump
Raros são os dias sem um novo livro sobre o presidente americano, Donald Trump, e a Casa Branca assinado por um ex-assessor devoto ou desafeto do mandatário.
Trump, um famoso homem de negócios e apresentador de reality show que chegou à Casa Branca ao derrotar o establishment político, sempre foi um assunto popular no mercado literário.
E os livros não param de sair.
Só na semana passada chegaram mais duas obras às estantes nas livrarias dedicada a obras sobre Trump, um do veterano e premiado jornalista Bob Woodward e outro do ex-advogado do presidente Michael Cohen.
Nessas estantes estão desde monumentais trabalhos investigativos de repórteres a memórias "reveladores" de familiares — mas também uma série de livros pró-Trump de autores conservadores.
A análise feita pela BBC neste artigo, no entanto, foca nos textos daqueles que trabalharam com Trump na campanha presidencial de 2016 ou na Casa Branca.
A lista é longa:
- John Bolton, ex-assessor de Segurança Nacional, que foi demitido ou se demitiu, a depender da versão que você ouvir. Trump o classifica como "uma das pessoas mais burras" que já encontrou no governo.
- James Comey, ex-diretor do FBI demitido por Trump. Ele não é exatamente um fã do presidente, que o chama de "desprezível".
- Andrew McCabe, ex-vice-diretor do FBI que foi demitido do governo logo depois de Comey. Trump também o chama de "desprezível".
- Anthony Scaramucci, que foi diretor de comunicação em 2017. Seu livro apoia Trump, mas ele depois se tornou um crítico do presidente. Segundo Trump, ele é um perdedor que implorou para ser readmitido.
- Sean Spicer, que renunciou do cargo de secretário de imprensa depois da contratação de Scaramucci. Não há rancor contra o presidente em seu livro.
- Sarah Sanders, que sucedeu Spicer até julho do ano passado. Ela continua fiel a Trump, que a considera uma "guerreira".
- Chris Christie, primeiro governador a endossar Trump na campanha de 2016. Ele liderou a equipe de transição do governo, mas caiu do cargo por ordens do genro do presidente, Jared Kushner.
- Omarosa Manigault Newman, participante do reality show "O Aprendiz" quando este ainda era apresentado por Trump antes de trabalhar com ele na campanha e na Casa Branca. Segundo o presidente, ela é "desprezada por todo mundo".
- Anônimos, que são autores não identificados que se descrevem como "autoridades de alto escalão da Casa Branca". Eles prometem revelar suas identidades neste ano. Trump afirma saber quem eles são, e os classifica como "fraudes".
- Corey Lewandowski, primeiro coordenador da campanha de 2016, e David Bossie, vice-coordenador da mesma campanha. Juntos, eles fazem um relato positivo do período.
- Cliff Sims, jornalista conservador que atuou como assessor de comunicação. Trump o classifica como "problemático" e funcionário de "baixo nível". Há uma disputa judicial entre ambos.
Todas essas obras são de natureza bastante parcial, e como grande parte dos relatos trata de conversas ou episódios privados, sobra apenas a palavra do autor sobre o que aconteceu ali — diferentemente das obras jornalísticas, que em geral confrontam versões e buscam se basear também em documentos.
De modo geral, os autores listados acima que falaram bem de Trump foram chamados de apologistas em busca de retorno, enquanto que os escritores críticos foram acusados de serem rancorosos e desonestos.
Mas que história eles contam juntos?
'Eu preciso de lealdade. Eu espero lealdade'
Qualquer que seja o veredito do autor sobre Trump, há um tema recorrente nas obras.
"Donald Trump tem um rígido código de lealdade", escreve Spicer. "Nada o machuca mais do que quando alguém em que confia se torna desleal", afirmam Lewandowski e Bossie. "Lealdade é um ponto-chave" em compromissos, resume Bolton.
Cohen, em "Disloyal"(Desleal, em tradução livre), e Comey, em "A Higher Loyalty" (Uma Lealdade Maior, em tradução livre), constroem seus títulos em torno desse conceito.
O livro de Comey, que alterna entre memórias, estudo de liderança e revelações, relata o momento em que, segundo ele, Trump lhe disse "eu preciso de lealdade, e eu espero lealdade". Comey, que era diretor do FBI à época, disse ter recusado o pedido. E acabou não durando muito no cargo.
No mundo de Trump, lealdade é a moeda que define quem sobrevive e quem consegue ser ouvido pelo presidente. Algumas vezes isso escorre para a política.
Em seu relato sobre como o governo americano lidava com a Venezuela, Bolton afirma que Trump esperava que o líder oposicionista Juan Guaidó, considerado presidente venezuelano por mais de 50 países, dissesse que "seria extremamente leal aos Estados Unidos e a mais ninguém".
Mas a lealdade no mundo de Trump é uma via de mão única, segundo parte dos autores. Como Sims nota no capítulo final de seu livro: "Eu deixei minha relação pessoal com o presidente me cegar para a única verdade infalível que se aplica a todos que não têm o mesmo sobrenome que ele: todos são descartáveis".
O presidente 'unicórnio'
A demanda por lealdade explica em parte porque diversos autores comparam Trump a um chefe de máfia. Comey e McCabe, pelo menos, têm alguma autoridade para falar assim em razão da longa experiência em combate ao crime.
As comparações não param por aí. Para os Anônimos, Trump é como "um garoto de 12 anos numa torre de controle de tráfego aéreo". Comey afirmou que sua liderança é como "uma floresta em chamas". Omarosa, cujo livro não chega a ser dos mais desabonadores contra o presidente, o chama de "racista, intolerante e misógino".
Do lado dos apoiadores, Christie afirma que Trump era igual a ele, mas com "combustível de avião". Para Spicer, na referência mais memorável de todas, Trump é como um "unicórnio, cavalgando um unicórnio no arco-íris".
Vida com o presidente. O lado bom...
Há muito pouco em comum nos livros de seus detratores e apoiadores sobre seu caráter. Para as vozes que o admiram, o presidente é um homem de carisma, instinto afiado e habilidade política. Para eles, seu estilo singular de oratória, ainda que seja exasperante em alguns momentos, é uma dádiva.
Trump "sabe como falar com o povo", afirma Lewandowski e Bossie. Spicer cita seu pai ao afirmar que "muitos candidatos falam algo como 'eu vou lutar por políticas que criarão uma economia melhor', e Trump diz 'eu vou recuperar seu emprego'".
Além disso, "de todos os traços de caráter que Trump mais gostava de alardear sobre si mesmo, seus autoelogios sobre sua 'energia' e 'resistência' eram as mais inegavelmente verdadeiras", diz Sims, uma observação que outros também fazem e que até certo ponto explica por que letargia é um ângulo de ataque favorito de Trump contra seus adversários.
Segundo esses autores que o apoiam, não há um lado radicalmente diferente de Trump quando as câmeras são desligadas. Sims chega a dizer que "realmente não há uma versão privada" dele.
Mas há histórias dele baixando a guarda, como quando silenciou, pela primeira vez, na noite da eleição ao saber de sua vitória, segundo o relato de Christie.
Outros falam sobre telefonemas oferecendo condolências pela morte de entes queridos, sua afeição por sua família ou carinho pelos militares dos EUA. Na narrativa de Sanders, Trump conhece um soldado durante uma visita de Natal ao Iraque. "Um membro do Exército dos EUA disse a ele que voltou para o Exército por causa dele, e o presidente disse: 'E eu estou aqui por sua causa.'"
... e o lado ruim
Vamos colocar dessa maneira: apenas Spicer fala em unicórnios. Omarosa afirma que Trump tem uma "ausência completa de empatia, o que serve para ampliar seu narcisismo extremo". McCabe diz que o presidente é o "mentiroso mais prolífico que já encontrei".
Os Anônimos descrevem Trump como ignorante, intelectualmente preguiçoso e tão desatento que é impossível informá-lo sobre algo. Um dos assessores presidenciais afirma que as demandas do presidente se enquadram em três categorias: as "totalmente estúpidas", as "impossíveis de implementar" e as "totalmente ilegais".
Em seu livro, Bolton, que é a maior autoridade do governo Trump até agora a escrever suas memórias, afirma que o presidente pediu ajuda ao colega chinês Xi Jinping para se reeleger, com ações como a compra, pela China, de produtos agrícolas em Estados centrais para uma vitória eleitoral. O ex-assessor de Segurança Nacional diz que Trump "não sabe a diferença entre seus interesses pessoais e os interesses nacionais".
Há diversos exemplos de Trump cortejando líderes autoritários. Bolton relata que o presidente tem o hábito de conceder "favores pessoais a ditadores de que ele gosta", e que ele era facilmente manipulado por eles. Bolton descreve uma carta do líder norte-coreano, Kim Jong-un, como se ela tivesse "sido escrita por pavlovianos que sabiam exatamente como tocar os nervos da autoestima de Trump" e diz que, em um encontro de cúpula, tinha receio de deixar Trump sozinho com o colega russo Vladimir Putin.
Para Sims, tudo é pessoal para Trump. Tudo. Em assuntos internacionais, segundo ele, o presidente acredita que as relações pessoais com líderes estrangeiros eram mais importantes do que interesses geopolíticos em comum. Sims o descreve como um homem de "talentos extraordinários e deficiências impressionantes".
Trump aperta o botão
Que os autores me perdoem, mas é difícil resistir à tentação de reduzir seus livros, em que ainda falam de coisas como maternidade, suas carreiras ou citam os fundadores republicanos dos Estados Unidos, a uma boa anedota cada.
No livro de Omarosa, esse momento se dá quando Trump pergunta se ele pode fazer um juramento para o cargo colocando a mão sobre uma cópia de seu próprio livro, "A Arte da Negociação". Ela diz que "depois, ele tentou me fazer acreditar que estava brincando".
Sanders descreve o episódio em que Trump tenta ajudar o líder norte-coreano a melhor sua higiene bucal. "Como o almoço estava começando, o presidente ofereceu a Kim uma pastilha de menta. 'Tic Tac?'. Kim, confuso e provavelmente preocupado com a possibilidade de envenenamento, não sabia direito como responder. Trump então baforou no ar para mostrar a Kim que era apenas uma bala para o hálito."
Mas a história vencedora é a de Sims, que afirmou ser possível encontrar na mesa presidencial no Salão Oval da Casa Branca uma pequena caixa de madeira com um botão vermelho dentro.
"Se Trump nota alguém olhando para a caixa, ele se levanta para tirá-la de perto. 'Não se preocupe, ninguém quer que eu aperte aquele botão'."
"Convidados riem com nervosismo e a conversa prossegue, até que um tempo depois ele aperta repentinamente o botão. Sem saber direito como reagir, os convidados olham espantados uns para os outros. Pouco depois, um auxiliar entra carregando Coca Diet numa bandeja e Trump cai na gargalhada."
Na moda e na cultura
Trump é frequentemente fotografado usando uma gravata excepcionalmente longa, com a ponta caindo abaixo da linha da cintura. O motivo, segundo Christie, é que o presidente acredita que isso o faz parecer mais magro.
Quanto ao famoso topete, Sims diz que sempre carregava uma lata de spray capilar no bolso para o caso de o penteado presidencial precisar de um retoque. Há ainda uma cama de bronzeamento artificial na Casa Branca para uso do presidente, diz Omarosa, que também alega que um funcionário foi demitido porque Trump não gostou do "manuseio" dela.
Por outro lado, os livros nos mostram que Trump considera "November Rain", do Guns N' Roses, o "melhor videoclipe de todos os tempos" (Sanders) e que o presidente americano estava obcecado em enviar um CD com "Rocket Man", de Elton John, para o líder norte-coreano Kim Jong-un (Bolton).
Além dos resumos de documentos e jornais, o presidente não é descrito como um grande leitor de livros. Scaramucci, porém, nomeia "Nada de Novo no Front", de Erich Maria Remarque, como o favorito de Trump, enquanto Lewandowski e Bossie dizem que a autobiografia do psicólogo suíço Carl Jung é outra obra apreciada pelo presidente.
Por que nós servimos
E o que atraiu aqueles que trabalharam para Trump, mas depois se voltaram contra ele?
Para Omarosa, era uma questão de lealdade, até porque, entre outros pontos problemáticos, sentia que, sendo negra em um governo com pouca diversidade, oferecia capital político.
Para outros, há um sentimento de lealdade para com o partido Republicano, e uma agenda, menos relacionado ao próprio presidente. O partidarismo não deve ser subestimado. Como Sanders coloca, sobre aderir à campanha: "Seria Trump ou Hillary, era um ajude a salvar o país ou deixe-o ir para o inferno."
Bolton diz que sabia dos "riscos em jogo", mas sentiu que poderia lidar com isso. Os dois formavam um casal estranho. Trump prometeu parar com as "guerras sem fim", mas nomeou um homem sobre o qual disse "nunca ter visto uma guerra de que não gostasse".
Durante o período de Bolton no governo Trump foram adotadas políticas agressivas contra o Irã, a Venezuela e outros países. Seu arrependimento é que eles não foram agressivos o suficiente.
Erros foram cometidos (mas não por mim)
Na grande tradição das memórias, os erros são reconhecidos e, em seguida, a responsabilidade, afastada.
A campanha de Trump e a Casa Branca parecem extraordinariamente fratricidas. A maioria dos livros, especialmente dos membros da equipe de Trump, inclui longos ataques a colegas. Alguns argumentam que as pessoas erradas no emprego errado explicam alguns dos erros, em vez de jogar a responsabilidade sobre o presidente.
Ao chegar à Casa Branca, Bolton é avisado pelo então chefe de gabinete, John Kelly, que "este é um lugar ruim para se trabalhar, como você vai descobrir".
Spicer e Sanders atacam a imprensa. Trump "nunca recebeu o crédito adequado da grande mídia por seus sucessos", diz o primeiro autor.
Também há um senso de que funcionários de Trump seguraram as pontas em momentos importantes. Bolton disse que considerou renunciar em vários momentos, mas que a gota d'água foi o fracasso de negociações com o Talebã.
Tanto Comey quanto McCabe descrevem e lamentam os momentos em que não o enfrentaram. Relatando uma reunião "bizarra", na qual o presidente perguntou em quem ele votou, McCabe se pergunta se não deveria te adotado uma atitude de confronto: "Mesmo se tratando de Donald Trump, ainda é o presidente Trump. Então, o reflexo, a resposta automática que senti da parte mais profunda de mim mesmo, foi ser respeitoso e flexível."
Lições para a eleição deste ano
Esses livros não são o lugar óbvio para encontrar previsões de como a eleição presidencial em 3 de novembro vai se desenrolar. Muitos deles começam com o autor sendo demitido ou renunciando do cargo, portanto, eles não podem alegar saber o que ocorre na Casa Branca. Mas é possível pescar ali uma ou duas dicas.
Comícios têm um lugar central no mundo de Trump, como uma fonte de energia e um grupo de foco instantâneo para ele aprimorar sua mensagem. Ele quer repetir e saborear de novo a impressionante vitória de 2016.
"Eu sentiria a tensão que acredito incomodar mais Trump, pelo menos inconscientemente: nada sobre ser presidente chegou para ele ao nível do se tornar presidente", diz Sims.
O título e o tema do livro de Lewandowski e Bossie, "Let Trump Be Trump", aludem ao retrato de um homem que não vai mudar, e nem deveria, dizem eles, devido ao seu sucesso da última vez.
Com o adversário democrata Joe Biden ainda na liderança das pesquisas de intenção de voto na eleição deste ano, talvez a melhor lição venha de Christie, que Trump derrotou nas primárias a caminho da vitória em 2016.
"Como alguém que concorreu contra ele, eu sei disso: subestime-o por sua conta e risco."
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