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'Eu me sinto na fase mais difícil de uma guerra', diz enfermeira de hospital lotado no RS

A enfermeira Ana Paula Lemos contou à BBC sua rotina em um hospital cheio de pacientes de covid-19 no Rio Grande do Sul - Arquivo pessoal
A enfermeira Ana Paula Lemos contou à BBC sua rotina em um hospital cheio de pacientes de covid-19 no Rio Grande do Sul Imagem: Arquivo pessoal

Nathalia Passarinho - Da BBC News Brasil em Londres

27/02/2021 08h50

Enfermeira do Rio Grande do Sul conta rotina em hospital cheio de pacientes de covid-19.

Quando a enfermeira Ana Paula Lemos correu para a UTI de pacientes com covid-19 para fazer uma transfusão, não estava preparada para a cena que iria presenciar. Ao lado do paciente que precisava de sangue, um homem de cerca de 60 anos implorava para ser intubado.

Com falta de ar e dores, ele queria ser sedado, perder a consciência, deixar de sentir.

"Ele estava consciente e implorando para ser intubado, porque não aguentava mais a dificuldade para respirar. Me chocou muito esse paciente implorar para respirar sem saber se sairia do respirador, sem saber se voltaria à consciência, se sobreviveria", relatou a enfermeira à BBC News Brasil.

O homem teve o pedido atendido e foi intubado, mas morreu poucos dias depois.

Lemos é coordenadora da área de transfusão de sangue do Hospital Tacchini, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. O Estado está próximo do colapso do sistema de saúde e acionou a fase mais crítica do plano de contingência ao coronavírus.

"Estamos com quase 100% da ocupação. Temos três UTIs. Uma é destinada só para pacientes com covid-19. Ela está com lotação de praticamente 100% dos leitos. Temos outras duas UTIs que já atingiram lotação máxima", contou a enfermeira.

"Cirurgias eletivas foram todas suspensas. Estamos trabalhando com situações de urgência e emergência. A entrada de visita foi totalmente restrita. Os pacientes ficam sem acompanhantes para reduzir o fluxo de pessoas e só falam com a família por vídeo."

Pior fase da 'guerra'

Lemos presenciou dezenas de pacientes morrerem desde o início da pandemia, inclusive alguns com os quais convivia havia meses ou anos, já que eram pessoas que precisavam de transfusões periódicas por outras condições de saúde.

"Trabalhamos com muitas pessoas em tratamento de câncer e tivemos muitas perdas de pacientes fixos que acabaram contraindo covid. A gente se apega ao paciente. E chega outro dia e a gente diz: mais um a gente perdeu."

Ela diz que se sente numa "guerra" e que o momento atual é o pior desde o início da pandemia. "O mais difícil é o sentimento de que isso não vai ter fim. Parece que a gente não vê uma luz. A gente vê os pacientes internando, internando, e a gente não vê uma saída. A gente tem que aguentar firme", afirma, embargando a voz.

"Ninguém nos perguntou se a gente queria entrar na guerra ou não e a gente entrou. E essa é a fase mais difícil."

Segundo Lemos, comparado com o primeiro pico de casos no Rio Grande do Sul, o atual está provocando lotação mais acelerada de todas as unidades do hospital.

"Está pior em volume de internação e a velocidade de contágio parece estar maior. Nós já tivemos 100% de ocupação de UTI antes, mas as unidades de internação estavam mais vazias. Tínhamos como remanejar, agora não. E estamos no limite do estoque de sangue."

Jovens morrendo

Lemos também disse que percebe um fluxo maior de jovens com quadro grave de covid-19. Despedir desses pacientes é uma das partes mais difíceis do trabalho, diz.

Ela contou que recentemente teve que acalmar homem de 36 anos com covid-19 que parecia ter poucas chances de sobreviver.

"A gente não pode dizer para o paciente que ele vai melhorar, que isso vai passar, porque em alguns casos não é verdade. Falei que ele ia receber uma medicação que ia amenizar a dor e que as coisas iriam se organizar da melhor forma para ele, naquele momento", disse. O rapaz acabou morrendo.

"Tentamos fazer tudo de maneira humana, sensível, dar conforto. Mas a gente está observando um número muito grande de pacientes jovens com covid grave. É duro. Às vezes eu estou indo para casa e dou aquela engasgada."

Pressão constante

Lemos diz que a pressão é tão grande que alguns colegas desenvolveram ansiedade, saíram de licença ou pediram demissão.

"Está tendo muito desligamento por questões psicológicas. Eu não sei como ainda estou limpa de medicação, de antidepressivos. Eu tiro forças do meu filho. Ele não pode me ver desabar", afirma.

A enfermeira explica que o fato de presenciar tantas mortes todas as semanas provoca um sentimento de impotência. E os profissionais de saúde ainda convivem com o temor de cometer erros ou de faltarem recursos.

"A pressão psicológica é muito grande. A gente trabalha com o medo de errar, porque sabemos que um erro pode ser fatal. Tem a pressão de não ter recursos para atender da melhor maneira. Tem o sentimento de impotência quando fazemos o melhor e o paciente morre..."

Isolamento da família

Além do trabalho sob constante pressão, Ana Paula Lemos precisou fazer sacrifícios na vida pessoal para continuar a rotina no hospital. Para não expor os pais idosos ao risco de contrair covid-19, ela ficou 10 meses sem ver pessoalmente a mãe e o pai.

A enfermeira acabou pegando a doença e contagiou o marido, mas os dois se recuperaram e o filho pequeno do casal não apresentou sintomas.

Lemos diz que fica "revoltada" quando vê notícias de festas e pessoas descumprindo regras de contenção social. Ela também critica o fato de o comércio ter se mantido aberto em boa parte do país enquanto as escolas fecharam.

"Dá uma revolta. Era essencial ter escola aberta, até porque eu preciso trabalhar e não tenho onde deixar meu filho. Enquanto isso, você vê as pessoas fazendo festa, como se nada estivesse acontecendo. Como que as escolas podem fechar e o comércio fica aberto?", questiona.

Apesar das dificuldades, quando perguntada sobre se cogita largar o posto, Lemos diz que não. "Eu quero estar aqui atendendo os pacientes. Eu me formei para isso. A gente precisa seguir em frente."

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