'É muita humilhação': o desabafo de mulher após fala de Bolsonaro sobre analfabetos
Durante live após primeiro turno, presidente associou alto índice de votos de Lula no Nordeste ao analfabetismo.
"Aquilo me deixou deprimida mesmo. É muita humilhação", comenta a auxiliar de limpeza Joana* ao lembrar da declaração recente do presidente Jair Bolsonaro (PL), que associou o analfabetismo no Nordeste ao alto índice de votos no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na região.
"A coisa mais triste do mundo é não saber ler e precisar depender dos outros, aí ele vai e fala essa besteira", diz Joana à BBC News Brasil.
Ela, que tem por volta de 60 anos, nasceu em uma região no interior da Bahia e há cerca de três décadas mora em uma comunidade no Rio de Janeiro (RJ), para onde se mudou com o marido e os filhos em busca de uma vida melhor.
Na infância, Joana morava em uma região rural junto com a mãe e os irmãos e não frequentou uma escola, porque precisava ajudar a família. "A gente morava na roça mesmo, não tinha água, luz, não tinha nada."
Na região Nordeste, a atual taxa de analfabetismo corresponde a 13,9%, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2019, a mais recente em relação ao tema.
Esse número representa uma taxa, aproximadamente, quatro vezes maior que as regiões Sudeste e Sul ? ambas com 3,3%. No Centro-Oeste, esse número é de 4,9%. Já na região Norte é de 7,6 %.
Ainda há cerca de 11 milhões de brasileiros que não sabem ler ou escrever, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse número de analfabetismo absoluto tem diminuído no país nas últimas décadas ? apesar disso, indicadores apontam o avanço do analfabetismo funcional (quando o indivíduo tem dificuldades para reconhecer textos simples) nos últimos anos.
Em meio à preocupação de especialistas em educação com o analfabetismo no país, a relação feita por Bolsonaro é considerada sem qualquer fundamento.
"É muito forte uma declaração dessas vinda de um presidente da República. Se ele atribui dessa forma, é preciso dizer que ele também tem responsabilidade no analfabetismo", diz a pedagoga Ana Paula Abreu Moura, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Foi, inclusive, o governo dele que extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), criada em 2004, sob a alegação de que suas ações seriam alocadas em outras secretarias, o que, de fato, não aconteceu e paralisou ações que vinham sendo desenvolvidas", acrescenta Ana, que trabalhou com a educação de jovens e adultos por 11 anos e atualmente ensina professores que dão aulas para esse público.
A declaração de Bolsonaro
A afirmação de Bolsonaro foi feita em live após o primeiro turno, no qual Lula obteve 48,4% dos votos contra 43,2% do adversário. Na transmissão, o presidente mencionou uma reportagem que afirma que o petista venceu em nove dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo no país.
Na live, Bolsonaro disse que os Estados do Nordeste enfrentam problemas como o analfabetismo porque são "administrados pelo PT".
"Onde a esquerda entra leva ao analfabetismo, leva à falta de cultura, leva ao desemprego, leva à falta de esperança. É assim que age a esquerda no mundo todo", declarou.
Lula derrotou Bolsonaro em todos os Estados do Nordeste. Sua maior vitória na região aconteceu no Piauí, onde o petista teve 73,8% dos votos válidos, ante 20% de Bolsonaro.
Uma checagem feita pelo portal UOL apontou que a declaração de Bolsonaro sobre a administração do PT em Estados do Nordeste nos últimos 20 anos é falsa.
Os Estados da região com maior hegemonia petista na região são Bahia e Piauí, que tiveram governadores do PT por 16 anos. Já alguns outros Estados foram ou ainda são administrados pela legenda por períodos inferiores a 10 anos. Enquanto isso, Alagoas, Maranhão e Paraíba não tiveram nenhum governo do PT desde, ao menos, 1994, aponta o UOL Confere.
Para Ana Abreu, a declaração de Bolsonaro que relaciona os votos dados no petista ao analfabetismo é uma forma de buscar um argumento para não assumir que os nordestinos não aprovaram a gestão do atual presidente.
"É muito simples olhar essa realidade do país hoje e dizer simplesmente que quem votou no Lula é analfabeto ou que o resultado eleitoral tem a ver com analfabetismo. É uma discussão muito mais complexa."
A pedagoga frisa que o analfabetismo não impede que as pessoas sejam "perspicazes na leitura do mundo".
"Não questionam a capacidade dessas pessoas para trabalhar, ter famílias ou educar filhos. Para isso elas servem. Mas na hora de exercer o direito de votar elas são desqualificadas?", questiona.
'Nordestino que não vota no Lula tá doido'
Joana afirma que a declaração de Bolsonaro sobre o Nordeste reforça o que ela já pensava sobre o presidente. "Ele humilha muito as pessoas, principalmente o povo nordestino."
Eleitora de Lula, ela defende que todo nordestino vote no ex-presidente. "Nordestino que não vota no Lula tá doido. Ele foi o pai da pobreza. Falo com sinceridade, lá na minha terra, na minha roça, ele que levou luz, água e televisão", diz.
Mas Joana conta que nem sempre pode manifestar o apoio a Lula, principalmente em seu trabalho em uma empresa no Rio de Janeiro. "Esse negócio de política me deixa muito triste e chateada, porque às vezes tô dentro de uma sala (no trabalho) e jogam piadas, falam dos nordestinos e dizem que são todos burros e por isso têm que sofrer. Não falam direto pra mim, mas eu tô ali dentro da sala e sabem que sou nordestina."
Em razão disso, ela costuma dizer que não vota - o voto não é obrigatório para pessoas analfabetas. "Faço isso para evitar problemas. Às vezes alguém chega e pergunta: 'e aí, vai votar em quem?' Eu falo: 'vocês são abestados, eu não voto'."
"Todo mundo quase no trabalho é Bolsonaro, quem é Lula não costuma falar. Eu fico quieta, na minha, porque se eu falar alguma coisa é capaz de nem trabalhar mais lá."
Por causa dessa situação no serviço, Joana pediu que sua identidade fosse ocultada na reportagem.
A alfabetização
Quando termina o expediente, Joana segue para um local que ela avalia que tem mudado a sua vida: a sala de aula.
Após uma vida inteira sem saber ler, ela foi incentivada pelos netos a ingressar em um curso gratuito de alfabetização. "Decidi estudar porque meu neto mais velho falou: 'vó, por que você não estuda?' Às vezes eu fico falando: 'a vovó é muito burra'. E ele diz: 'vó, não fala isso, você é muito inteligente, sabe trabalhar e pegar ônibus'", diz, emocionada.
"Aí eu coloquei na minha cabeça que vou estudar e vou aprender. E meus netos ficam falando: vó, você é inteligente", completa, ainda emocionada.
As aulas começaram há alguns meses. Recentemente, ela teve uma de suas primeiras vitórias: conseguiu escrever o próprio nome. "Eu não sabia nada. Agora, a professora vai colocando algumas coisas no quadro e eu já consigo entender as letras. Só falta aprender a ler. Quando aprender, vou ficar muito feliz", comenta.
Professores do curso de alfabetização contaram à BBC News Brasil que Joana e outros alunos ficaram indignados e alguns até choraram por causa da declaração de Bolsonaro sobre o analfabetismo no Nordeste, principalmente porque a maioria das turmas é composta por nordestinos.
A pedagoga Ana Abreu Moura avalia que declarações como a de Bolsonaro reforçam um estigma que persegue as pessoas analfabetas.
"Há todo um estigma em volta do analfabetismo. O tempo inteiro tentam desqualificar essas pessoas. Por exemplo, é muito comum que o analfabetismo seja usado como xingamento. E a figura do Estado, que deveria amparar e desconstruir esse estigma, reforçou isso em rede nacional, já que a live do Bolsonaro teve grande repercussão", diz a especialista.
"Essas pessoas têm todo um esforço para conseguir, depois de um dia de trabalho, sentar na sala de aula para que possam se alfabetizar. É muito comum ouvir de um aluno que ele decidiu estudar para virar gente, porque nem gente ele se sente. Então é preciso também todo um trabalho social para mostrar a essas pessoas que o que elas tiveram foi a destituição de um direito, que é a educação, pela qual elas também pagam imposto", acrescenta.
Comentários como o de Bolsonaro, avalia a pedagoga, geram insatisfação e tristeza. "Apesar de não ter autonomia com leitura e escrita, essas pessoas possuem outros saberes, inclusive de leitura do mundo", reforça a pedagoga.
E para muitas dessas pessoas, a alfabetização é um passo fundamental e também um incentivo para que continuem estudando. É o caso de Joana, que quer continuar na sala de aula mesmo após aprender a ler e escrever. "Enquanto tiver escola, vou continuar."
"Agora eu tenho fé em Deus que o Lula vai ganhar, vou me aposentar e vou embora de volta pra minha roça. Fiz até promessa e vou cumprir", diz.
*Nome alterado para preservar a identidade da entrevistada.
- Este texto foi publicado originalmente em http://bbc.co.uk/portuguese/brasil-63237527
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