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O alemão do morro

Philipp Lichterbeck (as)

31/01/2018 13h29

Já foi moda entre os gringos, mas, mesmo assim, o colunista nunca pensou em se mudar para uma favela do Rio. E ficou surpreso e fascinado quando conheceu um alemão que já vive há dez anos no Complexo da Maré.Meu caminho até Timo Bartholl passa por uma igreja evangélica, uma creche e jovens com havaianas nos pés e kalashnikovs nas mãos. Eu caminho pela favela Morro do Timbau, que faz parte do Complexo da Maré. Ele é composto por 15 favelas e tem 130 mil habitantes. A Maré, como é conhecida, é o maior bairro marginalizado do Rio.

E tem a fama de ser também um dos mais perigosos. Duas quadrilhas de traficantes, uma milícia e a polícia travam nela um conflito complicado e brutal. Por isso, para muitos a Maré virou sinônimo de guerra das drogas, miséria e crime. Durante a minha caminhada, eu passo por várias bocas de fumo, nas quais jovens portam fuzis novos em folha. Isso me impressiona, claro.

Para Timo Bartholl, tudo isso é cotidiano. Ele vive há dez anos no Morro do Timbau. Esse alemão natural de Schleswig-Holstein comprou aqui um pequeno apartamento, administra com um coletivo o mercado de alimentos Roça e fabrica uma cerveja excepcional. Bartholl, de 40 anos, ainda organiza o bloco carnavalesco Se benze que Dá! e noites de cinema para crianças. "Tenho amigos entre os 8 e os 80 anos", diz Bartholl, que fez doutorado em geografia na UFF. Ele é tão bem integrado na favela que recebeu até uma certidão dos vizinhos: "Cidadão Maréense".

Mas o que leva um estrangeiro a viver voluntariamente num bairro perigoso e pobre, em particular a Maré? Há brasileiros que nunca botaram um pé numa favela. Muitos não fariam isso nem se fossem pagos. A classe alta brasileira, que lucra com essa reserva de mão de obra barata, vê as favelas com uma mistura de ignorância, desprezo e temor. Ela cultiva uma relação feudal bastante cômoda com a classe baixa. Fica indignada com os traficantes, mas nunca com a pobreza. E quando os tiroteios recomeçam em algum lugar, tem aqueles que comentam: "A única solução é matar todos!"

Timo Bartholl se mudou para a Maré em 2008. Era o ano em que algo parecia estar mudando na cidade. O governo do estado começara a colocar as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em algumas favelas centrais da zona sul. Depois de décadas de negligência total, o Estado queria mostrar serviço, afinal o mundo inteiro estava olhando para o Rio por causa da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Nas favelas com UPPs, a situação, de fato, começou a se acalmar, as armas sumiram das ruas e os tiroteios diminuíram (porém, aumentaram na periferia).

Atraídos pelos aluguéis baixos, logo os primeiros estrangeiros se mudaram para as favelas. Aos poucos passou a ser chique morar por lá. Bares ao gosto dessa nova clientela abriram. A favela do Vidigal virou o símbolo desse fenômeno: pessoas jovens de países ricos morando em bairros pobres do Rio. Mas também houve críticas. A mais comum era que, por causa dos gringos, os aluguéis subiam e os antigos moradores eram expulsos. Hoje essa acusação perdeu o sentido. O fracasso das UPPs e o retorno da violência catapultaram o Rio para dez anos atrás.

Eu mesmo nunca considerei me mudar para uma favela. Eu visitei muitas favelas para fazer matérias jornalísticas, fiz amizades, fui a festas – e perdi o típico olhar gringo, que é uma mistura entre receio e fascinação com a pobreza e o perigo. Mas sempre me incomodei com os montes de lixo, a canalização a céu aberto, o cocô de cachorro nos caminhos, a gritaria dos pastores evangélicos, o funk ensurdecedor de um lado e o Roberto Carlos do outro, o aperto, o calor, a poeira, o concreto. Embora adorasse a hospitalidade, a musicalidade, a resiliência e os corações abertos das pessoas, não entendia por que havia gringos que procuravam voluntariamente viver nessas condições.

Bartholl vê tudo isso de outro jeito, talvez menos burguês. Ele conheceu a Maré por meio de companheiros de estudos que faziam trabalhos educacionais na favela. Bartholl se uniu a eles e passou a dar aulas gratuitas de inglês. Sua decisão de se mudar para a Maré, depois, não teve nada que ver com alguma moda, mas com a convicção de que com o trabalho de base pode-se mudar alguma coisa. De fato, a Maré nunca estava em voga. Por aqui não há vistas maravilhosas como as do Vidigal, não há bares descolados e a praia é bem longe. Também nunca foi feita uma tentativa séria de conectar o bairro com o asfalto. Até hoje, tudo é precário: educação, saúde, segurança. "A Maré é complexa", diz um ditado bem apropriado. Por tudo isso, quando conheci o Bartholl, fiquei bastante fascinado com a escolha dele de viver aqui. Ele explicou que não conseguia mais se imaginar morando em Santa Teresa.

Na Maré, Bartholl tenta colocar em prática suas convicções políticas. Com três amigas, ele fundou o Coletivo Roça!. A ideia é comprar alimentos de pequenos agricultores da redondeza, que produzem de forma sustentável. Os clientes na Maré são pessoas que querem se alimentar de forma mais saudável. Além disso, o coletivo fabrica cerveja, seis tipos diferentes, 80 litros em cada preparação. É, até hoje, a única cerveja da Maré – e ela vende bem. Quando eu chego, a Roça está sendo ampliada. A intenção é ter mais espaço, diz Bartholl. A produção atual, uma Witbier, está no estágio final de produção, e várias geladeiras estão cheias de garrafas.

Subimos o Morro do Timbau até a moradia de Bartholl, que fica num dos pontos mais altos da favela. Da janela da cozinha pode-se ver a favela vizinha, a Nova Holanda. Ela está nas mãos de uma quadrilha rival, e os tiroteios entre a Nova Holanda e o Morro do Timbau são frequentes. O apartamento de Bartholl, que fica no meio da linha de fogo, já foi atingido por uma meia dúzia de balas perdidas. Numa janela há buracos de bala, e ele rebocou a parede em vários locais.

Para muitas pessoas, isso já seria motivo de sobra para se mudar. Mas Timo Bartholl se mantém firme e aguenta a situação. Assim como dezenas de milhares de moradores da favela, que não têm nada que ver com o tráfico de drogas. A favela é uma grande comunidade, diz Bartholl. Ele aprecia a solidariedade e a espontaneidade das pessoas. É como num vilarejo, diz, todos se ajudam. Foi assim que ele conseguiu superar a distância inicial dos moradores em relação a ele, o gringo: "Eu ajudei nas tarefas, bem simples!"

Também por isso, Bartholl acha ruim a fixação da mídia na violência e nas drogas. "Sou contra o que os traficantes fazem", diz. "Mas por isso devo achar bom que a polícia militar atire contra nós de helicóptero? Ou que o Bope mate inocentes? Ou que a escola feche toda hora porque há uma operação policial?" Concordo com Bartholl. O poder encara a favela apenas como um problema policial quando, na verdade, é um problema social – como o grande Bezerra da Silva ("A Voz do Morro") cantava faz muitos anos.

"Nessas condições", diz Bartholl, "é admirável que os moradores da favela tenham, todos os dias, disposição, esforço e coragem para ir ao trabalho e educar os seus filhos". A questão central, portanto, não é por que ele, um alemão, vive numa favela, mas como lugares marginalizados e desfavorecidos como favelas podem existir se, ao mesmo tempo, há locais incrivelmente ricos e privilegiados ao lado delas.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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