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Alemanha Oriental e Coreia do Norte: entre a ajuda e a desconfiança

Mark Hallam (av)

23/02/2018 11h25

Como partes socialistas de Estados divididos, muito unia Pyongyang e Berlim durante a Guerra Fria. Mas, por trás da fachada de amizade, havia dúvidas e críticas. E também cinismo e incompatibilidades.Havia muitos pontos de união entre os distantes primos comunistas da Coreia do Norte e da Alemanha Oriental (RDA), durante a Guerra Fria. Ambos haviam sido vítimas de bombardeios em massa, ambos eram parte de um país dividido em dois após um conflito, e ambos contavam com poucos amigos no cenário internacional, estando ansiosos por fazer mais alguns.

A República Democrática Alemã reconheceu a Coreia do Norte em 1949, quase imediatamente após sua formação, e antes de eclodir a Guerra da Coreia. "As forças democráticas da Alemanha se sentem especialmente ligadas ao povo coreano, o qual, como o alemão, está lutando pela unidade nacional e pelo reconhecimento de seus direitos no palco internacional", respondeu o chefe da diplomacia da RDA a seu homólogo norte-coreano, assim que se estabeleceram laços formais.

Durante a Guerra Fria, as duas nações cooperaram de diversas maneiras e graus. Em nenhum lugar isso é mais visível do que na cidade portuária de Hamhung, a maior depois da capital, Pyongyang. Os bombardeiros dos Estados Unidos a haviam praticamente arrasado durante a Guerra da Coreia, numa história que, sem dúvida, despertava empatia em cidades alemãs-orientais como Dresden.

"A RDA investiu milhões para reconstruir tudo", relata Bernd Stöver, historiador geopolítico da Universidade de Potsdam. "Eles efetivamente doaram uma cidade socialista à Coreia do Norte."

A Alemanha Oriental despachou uma equipe de engenheiros e especialistas em construção civil para trabalhar em Hamhung entre 1954 e 1962. Segundo observações da embaixada da RDA, o trabalho progrediu tão bem que parte dos recursos e da mão de obra foi mais tarde remanejada para Pyongyang, a fim de garantir que a localidade portuária não ofuscasse a capital.



Dúvidas e cinismo diplomático

Stöver descreve os laços entre os dois Estados como uma "amizade política", mais do que uma "relação íntima". Documentos da RDA e do Partido Socialista Unitário da Alemanha (SED) parecem corroborar essa avaliação. Entre outras fontes, o arquivo político do Ministério do Exterior em Berlim é extremamente rico em documentos, anteriormente confidenciais, sobre a política externa da Alemanha comunista.

Os telegramas diplomáticos de Pyongyang para Berlim Oriental muitas vezes destilavam cinismo e dúvidas sobre uma série de questões, desde as credenciais socialistas do país asiático à sua forma de tratar a própria população e seu uso – e, aos olhos dos diplomatas, frequente abuso – dos recursos da RDA.

Hoje, tais avaliações podem não parecer revolucionárias, mas estavam anos adiante de sua época, pelo menos segundo os padrões do Ocidente na Guerra Fria. Num momento em que o mundo reconhece, tardiamente, que "comunista" é, na melhor das hipóteses, um termo imperfeito para descrever o regime norte-coreano, a Alemanha Oriental tinha absoluta clareza sobre isso já nos anos 1960.

Duas Alemanhas, uma Coreia socialista

Ambos os países eram o segmento socialista relativamente discriminado de um país dividido pela geopolítica da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Contudo, essa que pareceria ser a característica comum mais unificadora entre Berlim e Pyongyang acabou, na prática, tornando-se um ponto de fricção.

A meta geopolítica da Alemanha Oriental, pelo menos no curto prazo, era basicamente obter reconhecimento internacional. Ela almejava um posto globalmente aceito como instância oposta e igual, sobretudo em relação à irmã República Federal da Alemanha (RFA).

A Coreia do Norte, por sua vez, nunca assinara um acordo de paz formal com a Coreia do Sul ou com os EUA depois da Guerra da Coreia, mantendo como única meta a reunificação coreana sob a bandeira socialista.

"A Coreia do Norte defende o ponto de vista de que só há um Estado coreano, o seu. Isso gera reservas sobre a perspectiva da RDA de que existem dois Estados alemães", observou o Ministério do Exterior alemão-oriental em 1970, antes de sugerir, de forma nem tanto sutil, que os "pontos táticos mais delicados" da posição de negociação da RDA talvez estivessem além da compreensão dos norte-coreanos.



"Berlim é presa fácil"

Pelo menos do ponto de vista formal, a Coreia do Norte aprovou a construção do Muro de Berlim como "um curso político muito inteligente contra os imperialistas da Alemanha Ocidental". Ela também apoiou verbalmente o conceito de "coexistência pacífica" defendido pela antibélica RDA: na qualidade de primeiro na linha de fogo, caso a Guerra Fria esquentasse na Europa, o país reivindicava o desarmamento nuclear mútuo.

Nos bastidores, porém, as autoridades norte-coreanas questionavam o curso de ação da Alemanha Oriental, sugerindo que se tratava-se de uma meia-medida, e que Berlim Ocidental era uma presa fácil, como demonstra um relatório de 1962 da embaixada em Pyongyang.

"Embora o camarada Yi Chu Yon [então vice-primeiro-ministro da Coreia do Norte] tenha elogiado nesse discurso formal o ponto de vista acima mencionado [a coexistência pacífica], ele também disse ao camarada embaixador [Kurt] Schneidewind que Berlim era uma ilha impossível de os imperialistas defenderem."

"Ele disse que a RDA detinha a superioridade estratégica, e que deveria realmente usá-la, antes que a perdesse. Só era necessário expulsar as forças ocupantes de Berlim e pôr os americanos para fora", revela o relatório de 1962. "Essa seria a principal tarefa a cumprir. Os imperialistas não declarariam guerra por causa de Berlim, ele disse. Seria apenas uma questão de aproveitar a situação com coragem."

No entanto a ponte aérea de Berlim, durante o bloqueio da cidade pelos soviéticos, em 1948-49, definitivamente provara que a Otan estava disposta a ir longe nas medidas não violentas com o fim de preservar Berlim Ocidental, e o cálculo militar de Yi Chu Yon nunca foi testado.



Censura e pirataria tecnológica

Consta que, ao visitar a Coreia do Norte em 1977, o líder político da Alemanha comunista, Erich Honecker, ficou impressionado com as multidões que saudaram a ele e Kim Il-sung nos eventos públicos. Pelo menos de acordo com subordinados alemães-orientais e a efusiva correspondência entre os coreanos e a RDA, os dois ditadores se deram bem no nível pessoal.

A mídia norte-coreana também noticiou de modo positivo sobre a visita. Entretanto altos funcionários alemães registraram a ação da censura estatal: o brinde de Honecker na recepção coreana foi citado no jornal estatal Rodong Sinmun, mas suas alusões à segurança europeia e ao desarmamento nuclear foram deixadas de fora.

Nessa época, as ambições nucleares de Pyongyang começavam a se cristalizar. Por sua vez, a RDA se mantinha como principal paladino socialista do desarmamento global.

Kim Il-sung visitou a Alemanha Oriental em 1984. Concluindo um processo iniciado durante a estada de Honecker no país asiático, assinou-se um acordo bilateral de amizade cultural. Consta que o líder coreano admirou os avanços alemães em tecnologia e computação, expressando interesse em aprofundar a cooperação bilateral em educação e pesquisa.

Ao longo dos últimos anos, um fluxo contínuo de estudantes norte-coreanos lotava as universidades alemães-orientais. Contudo também isso acabou se tornando uma fonte de tensão, quando alguns dos doutorandos estrangeiros foram apanhados tentando roubar segredos industriais durante seus estágios em empresas da RDA.

Culto à personalidade ameaçador

Talvez a preocupação central nos documentos alemães-orientais seja o que repetidamente se descreve como "culto à personalidade" em torno do "grande líder" da Coreia do Norte.

"Um culto à personalidade cada vez mais intenso tem agora se concentrado por um longo tempo em Kim Il-sung. Todas as conquistas do Partido e do povo coreano são atribuídas, em primeira linha, ao efeito do camarada Kim Il-sung [...] Então está se criando uma lenda em torno dele, o que, com todo o devido respeito a suas atividades, não reflete a verdade dos fatos", alerta um relatório interno do SED, de 1961, de autor não identificado.

Combinando-se tal beatificação de uma figura de "líder" forte com o insistente foco da propaganda de Pyongyang nas características nacionais e no povo norte-coreano, está claro que os funcionários da Alemanha Oriental que ainda se lembravam da Alemanha de Adolf Hitler devem ter traçado paralelos.

O mesmo relatório do SED de 1961 prossegue: "Todo o corpo da propaganda [do Partido dos Trabalhadores da Coreia] não é baseado nas obras do marxismo-leninismo, mas sim, única e exclusivamente, nos 'sábios ensinamentos de nosso renomado líder, o camarada Kim Il-sung'."



Ingratidão e manipulação da opinião pública

Depois da União Soviética e da China, a República Democrática Alemã era a terceira principal fonte de assistência financeira para a Coreia do Norte. Mas ela tinha motivos para acreditar que nem sempre se deu o devido valor a essa ajuda.

Um exemplo foi Hamhung: o porto no leste norte-coreano, reconstruído ao custo de centenas de milhões de dólares, não só constituiria mais tarde uma mostra de ingratidão para a RDA, mas também demonstraria até que ponto Pyongyang estava disposto a enganar seu povo e até a contradizer diretamente sua própria propaganda recente.

Quando o projeto foi concluído, em 1962 (dois anos depois do previsto, devido a problemas financeiros em Berlim Oriental), a mídia norte-coreana noticiou detalhadamente sobre a iniciativa; Kim Il-sung elogiou o apoio da RDA como uma "nobre expressão de internacionalismo proletário".

No prazo de alguns meses, porém, passou-se a minimizar o papel do regime irmão no projeto. As marcas das companhias alemãs foram retiradas da maquinaria em Hamhung e substituídas por outras, sugerindo tratar-se de fabricação nacional.

Por outro lado, o Ministério do Exterior da RDA registrava, ainda em 1964, que problemas com as máquinas ou falta de material nas fábricas ainda estavam sendo atribuídos a falhas dos parceiros alemães.

A RDA foi extinta antes de ocorrerem as piores ondas de fome na Coreia do Norte, na década de 1990, durante a era de Kim Jong-il, pai do atual líder, Kim Jong-un. Na ausência de cifras confiáveis, alega-se que a carência de alimentos custou desde 250 mil a 3,5 milhões de vidas.

Porém o problema já era tematizado na correspondência dos funcionários do regime alemão-oriental. No fim dos anos 1960, portanto mais de uma década após o fim da Guerra da Coreia, o racionamento ainda era intensivamente praticado na Coreia do Norte.

A secretária da embaixada da RDA Helga Picht comentou assim, em 1968, o ceticismo público diante de uma solicitação da conferência do Partido dos Trabalhadores da Coreia (WPK) por mais alimentos: "O apelo do plenário por 'dez gramas de gordura por cabeça' não foi levado a sério por ser irrealista e elevado demais. No ano passado, a média, para o ano inteiro, foi de apenas 200 gramas por pessoa."

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