Opinião: Duelo comercial China-EUA sinaliza mundo dominado por G2
Tarifas dos EUA sobre produtos chineses recrudescem o conflito econômico entre Washington e Pequim. Disputa evidencia corrida das duas grandes potências por supremacia global, opina o economista Thomas Straubhaar.Esqueça o termo "guerra comercial". Afinal, não se trata de aparelhos elétricos e soja. As sanções tarifárias americanas sobre as importações chinesas e as retaliações de Pequim sobre os produtos agrícolas dos EUA são puro simbolismo – bom para a atenção da mídia, ruim para as populações afetadas.
O conflito comercial é apenas o sinal mais visível de uma luta muito maior. Em jogo, verdadeiramente, está a vitória na corrida épica pelo poder, domínio e supremacia no século 21. "America first" versus "made in China" é o choque de gigantes geopolíticos que se anuncia.
Será que os EUA – como nos últimos 150 anos – continuam a ser a medida de todas as coisas e o "american way of life", o modelo da modernidade? Ou a China voltará ao topo da economia global? Lugar que pertence ao país, segundo a identidade nacional chinesa. Pois durante séculos, até menos de 200 anos atrás, a China estava economicamente muito à frente do resto do mundo.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nunca escondeu o fato de que "America first" é seu principal objetivo. Tudo o mais era e ainda é secundário e, na melhor das hipóteses, permanece um meio para um fim, ou seja, para perseguir, antes de tudo, os interesses americanos.
E para Trump, há apenas um inimigo em seu caminho: a China. Todo o resto é peixe pequeno geopolítico. É irrelevante se os chefes de Estado e de governo do G7, G8 ou G20 se reúnem, de tempos em tempos, para uma cúpula. Isso tudo não tem peso algum para o presidente americano. Para ele, sempre houve e há apenas o G2: os Estados Unidos e a China.
A doutrina do G2 não é, aliás, nenhuma mazela psicopática de Trump. Ele se move, nessa avaliação estratégica, dentro do contexto da análise geoestratégica de grande parte dos think tanks americanos. Da perspectiva deles, muito antes de Trump, era óbvio que apenas a China e os Estados Unidos, e não a Europa, desempenham um papel na competição pela supremacia na política econômica mundial.
Na batalha dos gigantes geopolíticos, a Organização Mundial do Comércio (OMC) também terá pouco a dizer. Isso é trágico, porque os EUA são a mãe da ordem mundial do pós-guerra. E desde que a China se tornou membro, no final de 2001, a divisão global do trabalho e o comércio mundial progrediram ainda mais rapidamente do que antes. Mas nem os EUA nem a China se deixarão deter pela OMC. E quando as sanções alfandegárias já não bastarem mais, eles recorrerão a armas realmente pesadas: as taxas de câmbio.
E não é coincidência, mas dura lógica econômica, que a moeda chinesa – o yuan ou renminbi – tenha desvalorizado 7% em relação ao dólar em poucas semanas. A desvalorização é uma potente arma do protecionismo. Diante dela, tarifas alfandegárias são apena balinhas de carabinas de ar comprimido.
Uma desvalorização do yuan significa nada menos que uma taxa de importação nacional de 7% sobre todos os produtos do exterior e não apenas uma pontual sanção chinesa sobre produtos individuais americanos. Ao mesmo tempo, ela é um subsídio à exportação para todos os fabricantes chineses nos mercados mundiais, o que torna os produtos chineses mais baratos em 7%. Com a depreciação do renminbi, o efeito das tarifas punitivas de Trump será, portanto, mais do que minado.
Uma guerra cambial é a continuação da guerra comercial com armas de calibre muito maior. Ela transforma a OMC em um tigre sem dentes. Pois em relação a estratégias de desvalorização, a OMC carece de competências e instrumentos para intervir.
Guerras cambiais não foram previstas em 1948 pelos membros fundadores da Organização Mundial do Comércio. Por quê? Naquela época, com o sistema de Bretton Woods de 1944, imperava uma doutrina de taxas de câmbio fixas, com o dólar americano como moeda de reserva, que continuaria vigente por quase três décadas.
O fim de fato da ordem econômica mundial multilateral faz com que os interesses europeus sejam degradados a bolas de jogo arbitrariamente manipuláveis ??dos Estados do G2. Porque no multilateralismo, os Estados Unidos e a China tinham apenas um voto, tanto quanto cada país da Europa. A UE, no seu conjunto, tinha, assim, um peso de voto 28 vezes superior ao dos EUA ou da China. Nas negociações bilaterais, porém, o poder dos mais fortes decidirá novamente – e aí, a Europa não deve nutrir a menor ilusão de que será poupada.
Já é mais do que tempo de procurar novas abordagens para além do livre comércio global, da não discriminação e do princípio da reciprocidade. Disso faz parte, em primeiro lugar, a percepção de que, para a Europa, a mentalidade de Estado pequeno é o oposto de uma estratégia bem-sucedida.
Num mundo dominado pelo poder do G2, nenhum dos países europeus ousa dar algum palpite sozinho, nem mesmo a Alemanha ou a França. Esta é a novidade e a diferença na era pós-multilateral. Somente em conjunto a Europa terá chance de defender seus próprios interesses contra uma estratégia de "America first” e uma China bem equipada tanto econômica como militarmente.
Thomas Straubhaar é professor de relações econômicas internacionais da Universidade de Hamburgo e ex-diretor do Instituto de Economia Mundial de Hamburgo (HWWI).
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A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter | YouTube | WhatsApp | App | Instagram
O conflito comercial é apenas o sinal mais visível de uma luta muito maior. Em jogo, verdadeiramente, está a vitória na corrida épica pelo poder, domínio e supremacia no século 21. "America first" versus "made in China" é o choque de gigantes geopolíticos que se anuncia.
Será que os EUA – como nos últimos 150 anos – continuam a ser a medida de todas as coisas e o "american way of life", o modelo da modernidade? Ou a China voltará ao topo da economia global? Lugar que pertence ao país, segundo a identidade nacional chinesa. Pois durante séculos, até menos de 200 anos atrás, a China estava economicamente muito à frente do resto do mundo.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nunca escondeu o fato de que "America first" é seu principal objetivo. Tudo o mais era e ainda é secundário e, na melhor das hipóteses, permanece um meio para um fim, ou seja, para perseguir, antes de tudo, os interesses americanos.
E para Trump, há apenas um inimigo em seu caminho: a China. Todo o resto é peixe pequeno geopolítico. É irrelevante se os chefes de Estado e de governo do G7, G8 ou G20 se reúnem, de tempos em tempos, para uma cúpula. Isso tudo não tem peso algum para o presidente americano. Para ele, sempre houve e há apenas o G2: os Estados Unidos e a China.
A doutrina do G2 não é, aliás, nenhuma mazela psicopática de Trump. Ele se move, nessa avaliação estratégica, dentro do contexto da análise geoestratégica de grande parte dos think tanks americanos. Da perspectiva deles, muito antes de Trump, era óbvio que apenas a China e os Estados Unidos, e não a Europa, desempenham um papel na competição pela supremacia na política econômica mundial.
Na batalha dos gigantes geopolíticos, a Organização Mundial do Comércio (OMC) também terá pouco a dizer. Isso é trágico, porque os EUA são a mãe da ordem mundial do pós-guerra. E desde que a China se tornou membro, no final de 2001, a divisão global do trabalho e o comércio mundial progrediram ainda mais rapidamente do que antes. Mas nem os EUA nem a China se deixarão deter pela OMC. E quando as sanções alfandegárias já não bastarem mais, eles recorrerão a armas realmente pesadas: as taxas de câmbio.
E não é coincidência, mas dura lógica econômica, que a moeda chinesa – o yuan ou renminbi – tenha desvalorizado 7% em relação ao dólar em poucas semanas. A desvalorização é uma potente arma do protecionismo. Diante dela, tarifas alfandegárias são apena balinhas de carabinas de ar comprimido.
Uma desvalorização do yuan significa nada menos que uma taxa de importação nacional de 7% sobre todos os produtos do exterior e não apenas uma pontual sanção chinesa sobre produtos individuais americanos. Ao mesmo tempo, ela é um subsídio à exportação para todos os fabricantes chineses nos mercados mundiais, o que torna os produtos chineses mais baratos em 7%. Com a depreciação do renminbi, o efeito das tarifas punitivas de Trump será, portanto, mais do que minado.
Uma guerra cambial é a continuação da guerra comercial com armas de calibre muito maior. Ela transforma a OMC em um tigre sem dentes. Pois em relação a estratégias de desvalorização, a OMC carece de competências e instrumentos para intervir.
Guerras cambiais não foram previstas em 1948 pelos membros fundadores da Organização Mundial do Comércio. Por quê? Naquela época, com o sistema de Bretton Woods de 1944, imperava uma doutrina de taxas de câmbio fixas, com o dólar americano como moeda de reserva, que continuaria vigente por quase três décadas.
O fim de fato da ordem econômica mundial multilateral faz com que os interesses europeus sejam degradados a bolas de jogo arbitrariamente manipuláveis ??dos Estados do G2. Porque no multilateralismo, os Estados Unidos e a China tinham apenas um voto, tanto quanto cada país da Europa. A UE, no seu conjunto, tinha, assim, um peso de voto 28 vezes superior ao dos EUA ou da China. Nas negociações bilaterais, porém, o poder dos mais fortes decidirá novamente – e aí, a Europa não deve nutrir a menor ilusão de que será poupada.
Já é mais do que tempo de procurar novas abordagens para além do livre comércio global, da não discriminação e do princípio da reciprocidade. Disso faz parte, em primeiro lugar, a percepção de que, para a Europa, a mentalidade de Estado pequeno é o oposto de uma estratégia bem-sucedida.
Num mundo dominado pelo poder do G2, nenhum dos países europeus ousa dar algum palpite sozinho, nem mesmo a Alemanha ou a França. Esta é a novidade e a diferença na era pós-multilateral. Somente em conjunto a Europa terá chance de defender seus próprios interesses contra uma estratégia de "America first” e uma China bem equipada tanto econômica como militarmente.
Thomas Straubhaar é professor de relações econômicas internacionais da Universidade de Hamburgo e ex-diretor do Instituto de Economia Mundial de Hamburgo (HWWI).
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