'Devolvemos nas urnas o que tentaram nos tirar na bala', diz Mônica Benício
"Devolvemos nas urnas o que tentaram nos tirar na bala". Em entrevista, Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, diz que sua eleição para a Câmara do Rio "é um recado de que a barbárie não está sendo aceita". Ela conta que pretende reapresentar projetos da ex-companheira.
Após a derrota do projeto de lei que instituía o Dia da Visibilidade Lésbica no calendário municipal do Rio de Janeiro, em agosto de 2017, Marielle Franco subiu à tribuna da Câmara dos Vereadores do Rio, a qual seria posteriormente batizada com seu nome.
"Quero lembrar aos senhores e senhoras vereadores que é século 21, 2017. O lugar das mulheres lésbicas existe. A gente busca uma maior visibilidade, e vai ter mulher lésbica por mais três anos na Câmara Municipal", discursou.
Pouco menos de um ano após o prognóstico, em 14 de março de 2018, Marielle foi brutalmente executada a tiros junto com o motorista Anderson Gomes. Neste ano, quando tentaria a reeleição, a companheira e viúva de Marielle, Mônica Benício, elegeu-se a primeira vereadora assumidamente lésbica da Câmara do Rio, pelo PSOL, com a 11ª votação da cidade (22.919 votos).
Arquiteta e urbanista de formação, Mônica afirma que irá apresentar novamente projetos de Marielle que foram rejeitados na Câmara do Rio. O mandato irá focar as pautas relacionadas aos direitos das mulheres e da população LGBT.
"Nós devolvemos nas urnas o que eles tentaram nos tirar na bala. Voltar com essa imagem da Marielle para dentro da Câmara fala de um projeto de esperança que a cidade do Rio tem, e é óbvio que tenho muita legitimidade por ser a viúva dela", afirma. Durante a campanha, este foi um ponto questionado pelo fato de Mônica não ser uma mulher negra.
"Quando questionam minha legitimidade como companheira da Marielle, há um ato lesbofóbico nisso. É difícil falar de respeito à memória da Marielle quando as pessoas não conseguem respeitar a família que ela escolheu em vida construir", argumenta.
DW Brasil: Que pautas e posições você pretende defender?
Mônica Benício: Durante a campanha e após a minha vitória, as pessoas transmitiram uma grande expectativa de continuidade do mandato que a Marielle fazia, nas pautas que ela fazia. Eu e ela éramos companheiras por muitos motivos, entre eles a afinidade política de duas mulheres da favela. Já havia um compromisso meu com a agenda política dela, feminista, antirracista, anticapitalista e LGBT. Acho que essa expectativa é muito legítima e bonita. Mais do que isso, ela me coloca num lugar de ainda maior responsabilidade. A ideia é seguir com as pautas dos direitos das mulheres, principalmente. Tudo o que diz respeito aos direitos das mulheres encontra muita dificuldade de aprovação na Câmara do Rio, que é uma casa muito misógina e fundamentalista, onde as pautas LGBT têm muita dificuldade de avançar.
Você já sabe quais projetos de lei irá apresentar?
Pretendo reapresentar alguns projetos que a própria Marielle apresentou e não conseguiu passar. Por exemplo, o do "Espaço Coruja", um lugar onde pais e mães podem deixar seus filhos no horário noturno enquanto estudam ou trabalham. Num primeiro momento, a casa aprovou o projeto, vetado depois pelo prefeito. Na Câmara, o veto foi derrubado. Mas, ao que tudo indica, o projeto não foi implementado de fato. Cobrar que seja efetivado é de fundamental importância. Após a execução da Marielle, alguns projetos foram reapresentados na Câmara. Um deles seria o "Se é real, tem que ser legal", que visa a fazer valer o direito ao aborto legal de mulheres que têm esse direito por lei, sem que o município ofereça condições para que realizem o procedimento com segurança e respeito. A Câmara sequer permitiu que fosse colocado em votação junto com os outros PLs reapresentados.
Entre os que foram votados, o único não aprovado foi justamente o PL que criava o Dia Municipal da Visibilidade Lésbica, rejeitado por apenas dois votos. Pautas que falam da vida das mulheres e da população LGBT me atingem diretamente e atravessam essa cidade de maneira muito profunda no seu conservadorismo, fundamentalismo e misoginia. Levar essas bandeiras e lutar para que tenhamos representatividade feminista, antirracista e anticapitalista dentro daquela casa é fundamental.
Que mensagem as urnas passam ao registrarem essa votação expressiva que você alcançou?
Nós devolvemos nas urnas o que eles tentaram nos tirar na bala. Voltar com essa imagem da Marielle para dentro da Câmara fala de um projeto de esperança que a cidade do Rio tem, e é óbvio que tenho muita legitimidade por ser a viúva dela. Em 2018 tivemos todos os motivos para nos retirarmos das ruas, principalmente as mulheres pretas, acatando aquele recado de barbárie e violência. Mas a gente fez o contrário. Mesmo com toda a dor, sofrimento e medo instalados na cidade do Rio, houve uma ressignificação desse sentimento. A Marielle foi vítima de uma barbárie, mas a sociedade a transformou num símbolo de resistência, esperança política e de um fazer político que fala muito sobre uma luta por uma sociedade mais justa e igualitária.
A gente vai chegar a quase mil dias sem a resposta de quem mandou matar. Não há nenhuma dúvida de que o assassinato da Marielle foi um crime político, uma violação de direitos humanos e um atentado à nossa democracia. Enquanto a resposta de quem mandou matar Marielle não chega, o que a gente admite no Rio hoje é a existência de um grupo político capaz de assassinar como forma de fazer política.
Ser eleita com mais de 22 mil votos neste ano de final do mandato da Marielle, que deveria ter durado quatro anos e foi de apenas um ano e meio, é um recado de que a barbárie não está sendo aceita. É um resgate dessa esperança que a imagem da Marielle traz numa política diferente. Acho muito simbólico que o Carlos Bolsonaro tenha sido eleito novamente, mas ele perdeu força desde a última eleição. A gente teve o Tarcísio Motta sendo o mais votado, e uma pessoa que carregava o nome de Bolsonaro não se elegendo [a ex-mulher de Jair Bolsonaro, Rogéria]. É óbvio que vai ser muito difícil, pela composição desta nova legislatura, mas minha votação fala muito sobre uma cidade que ainda acredita ser possível construir uma sociedade mais justa e igualitária, além de devolver esperança para a política.
Sua candidatura como mulher branca foi questionada dentro do PSOL?
Confesso que não acompanhei tudo porque tenho a política de não ler os comentários ruins, pela minha saúde mental e bem-estar psíquico. Mas houve muitas críticas nesse sentido, dentro e fora do partido, questionando como uma mulher branca poderia dar continuidade a determinadas pautas. Esses ruídos me chateiam, vindo de um campo específico, mas é muito pouco para o tamanho do trabalho e desafio que temos pela frente. Meu compromisso é fazer uma vereança de excelência, não só em respeito à memória da Marielle, mas em tudo o que a cidade do Rio precisa, de fato. Já é tão dura a realidade do Rio de Janeiro, com tantas questões, que meu incômodo pessoal com esse tipo de crítica reside no apagamento lesbofóbico. Quando questionam minha legitimidade como companheira da Marielle, há um ato lesbofóbico nisso. Isso dói para além do fato de eu ser uma mulher lésbica e companheira da Marielle. Dói por ver que é difícil falar de respeito à memória da Marielle quando as pessoas não conseguem respeitar a família que ela escolheu em vida construir.
Novamente, esses ruídos importam muito pouco diante do compromisso que estou assumindo com a cidade do Rio em fazer um trabalho comprometido com a maior parte dessa população. É óbvio que isso passa por honrar profundamente a memória da Marielle, e não enquanto minha companheira, mas como ativista que eu respeito, enquanto esse símbolo que ela se torna de tudo o que representa, e por entender que eu faço parte dessa construção também. A Marielle se torna um símbolo de representatividade porque a sociedade escolheu não acatar a barbárie e transformar a história daquela mulher, que despertou muita identificação, num símbolo de luta e esperança.
O PSOL teve como candidata à prefeita uma mulher negra da Maré, com um vice negro na chapa, e fez uma divisão coerente do fundo partidário. O fato de eu ser uma aposta como puxadora de legenda era justamente pelo tamanho da imagem que se torna enquanto figura pública a viúva de Marielle e acreditar que isso poderia ajudar a ampliar outras cadeiras. Infelizmente, o cálculo político é feito com esse coeficiente. Inclusive, quanto mais votos esses ditos puxadores de legenda tiverem, mais cadeiras a gente pode abrir e maior a possibilidade de ter outras mulheres entrando e ocupando mais uma cadeira. A estratégia do partido se mostrou correta, tanto que havia no início a preocupação de manter as seis cadeiras, e conseguimos ampliar para sete. Isso é muito importante: a bancada do PSOL se tornou a maior da Câmara e fará oposição responsável e propositiva ao prefeito eleito -- que, espero, não seja o Crivella.
Após a eleição, você destacou ser a primeira mulher assumidamente lésbica eleita para a Câmara do Rio. Qual é a importância desse feito?
O Brasil é um dos países que mais assassina sua população LGBT. A gente fala que representatividade importa, para que outras mulheres tenham referências e se sintam inspiradas a disputar esse lugar, algo muito difícil. As mulheres lésbicas têm um alto índice de estupro corretivo no Brasil. Existe a narrativa de que, se ela é lésbica, é porque não encontrou um homem que a satisfizesse de forma plena. Lidar com isso é muito difícil, principalmente num ambiente como o da Câmara do Rio, fundamentalista e extremamente LGBTfóbica. O Rio de Janeiro é um laboratório interessantíssimo da política nacional e desse cenário hostil. Tivemos a Marielle sendo assassinada em março de 2018 e, após a eleição do Bolsonaro, o Jean Wyllys, outro LGBT eleito pelo Rio, precisou se exilar. O David Miranda, nosso vereador assumidamente LGBT, entrou nessa vaga para deputado federal deixada pelo Jean. Ou seja, não há nenhuma ocupação de representatividade LGBT na Câmara Municipal hoje.
Com a minha entrada, há o bônus de ter a representatividade de uma mulher, e o ônus profundo de ser mulher em um ambiente dominado por homens machistas, LGBTfóbicos, extremamente preconceituosos. Tudo o que se fala a respeito de direito das mulheres é sempre mais difícil de ser tocado. Eu sou uma mulher lésbica favelada que reivindico esse lugar. Todas essas características, somadas, vão trazer um desafio muito grande na ocupação daquela casa, porque existe essa tentativa de desqualificação do lugar da mulher, em si, sobretudo das lésbicas. Os desafios são muitos, mas vamos lá. Uma das respostas para isso será a reapresentação do PL da Visibilidade Lésbica no calendário da cidade, retomando essa pauta. Tem um vídeo muito forte feito após a derrota do projeto de lei em que a Marielle fala "vai ter mulher lésbica por mais quatro anos nessa casa, sim". Ela seria assassinada meses depois desse relato. É muito simbólico esse mandato que vai ocupar a casa daqui a um mês e meio, dizendo que ali vai ter mulher lésbica por mais quatro anos sim.
Olhando em perspectiva, passados dois anos e meio do assassinato da Marielle, que caminhos ela abriu?
A Marielle fez uma grande ampliação do debate sobre as mulheres ocuparem mais espaços na política, com ousadia, comprometimento e responsabilidade. O efeito do assassinato dela na política acontece de uma maneira muito poderosa, dizendo que não só a vida dela não foi em vão, como a morte também não será. Isso a coloca nesse lugar de representatividade, servindo de inspiração para tantas mulheres e LGBTs se sentirem encorajados a disputar os espaços de poder.
A gente está entrando para disputar espaços que ainda não são produzidos para nós, têm um profundo desrespeito e desprezo por nossa existência. Você bancar ocupar um lugar dentro de um espaço desses pra dizer que vai ter resistência, sim, é de uma ousadia admirável. A ousadia de ter uma mulher preta trans como a Erika Hilton (PSOL) ocupando uma casa como a Câmara Municipal de São Paulo não é qualquer coisa. Envolve muita força e coragem, mas nem por isso deixa de ser doloroso estar ali. A gente tem uma conjuntura que nunca favoreceu nossos corpos, nossas vidas. Pelo contrário: o projeto político do Brasil sempre foi matar os indígenas, quilombolas, LGBTs, mulheres. O governo Bolsonaro promoveu uma retirada de direitos adquiridos por muita luta dos movimentos sociais, durante muitos anos, em um retrocesso muito rápido e violento.
Quando a gente tem uma figura como a da Marielle servindo de esperança e inspiração para a gente disputar esse lugar e fazer uma politica diferente, é o maior ganho que a gente tem diante dessa conjuntura tão dura. Se há alguma beleza no meio do caos, é justamente entender que o recado político que tentaram dar na execução da Marielle não foi comprado pelas pessoas que deveriam estar ali sendo diretamente atingidas por aquele crime. Tudo o que ela representava em seu corpo e história de vida não faz parte dessa política do Brasil. E os homens que hoje fazem a manutenção dessa política não querem nada do que a Marielle representa disputando espaço de poder. Mas o movimento foi justamente o contrário a esse recado. Estamos falando do legado de duas décadas da vida da Marielle em que ela estava ali, como defensora de direitos humanos, fazendo um trabalho de excelência -- que, infelizmente, só ficou público e notório após uma execução tão bárbara.
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