Vento e terra: eólicas miram lotes da reforma agrária para expandir no RN
Quase metade dos parques de energia eólica do Rio Grande do Norte (RN) está no entorno de assentamentos da reforma agrária, mostra levantamento da Repórter Brasil. As empresas do setor buscam expandir suas operações sobre essas terras, o que levanta dúvidas sobre o impacto nas comunidades agrícolas.
O estado lidera a produção nacional de energia gerada por ventos. São 386 parques em operação ou em construção, sendo 48% a menos de 1,5 km de assentamentos rurais.
Essa proximidade não só vem mudando a paisagem local, como também tem exposto os agricultores ao barulho das enormes torres e à poeira do fluxo intenso de caminhões. Agora, porém, as empresas miram as áreas no interior dos assentamentos.
Esse movimento ficou mais intenso a partir de 2022, com a Instrução Normativa nº 112 do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A regra autoriza o órgão a negociar o uso dos lotes para instalações eólicas, em troca de projetos de renda para assentados.
Os acordos podem envolver tanto os assentamentos de reforma agrária - desde que haja aval do Incra - como também as terras já tituladas. Neste último caso, as negociações se dão diretamente com os agricultores, que possuem o título definitivo do lote.
Contudo, para especialistas ouvidos pela reportagem, o interesse das eólicas por essas áreas representa uma ameaça aos empregos no campo e à produção de alimentos.
A pesquisadora Mariana Traldi, do Instituto Federal de São Paulo, avalia que os contratos de arrendamento contradizem o objetivo da reforma agrária, pois concentram terras nas mãos de empresas, em detrimento do trabalhador rural.
Se a reforma agrária tem como principal objetivo democratizar o acesso à terra, esses contratos fazem o oposto.
Mariana Traldi, pesquisadora
Essa nova dinâmica terá ainda mais incentivo caso o Congresso passe o Projeto de Lei 3266/21, já aprovado no Senado. O texto altera a Lei da Reforma Agrária e autoriza projetos eólicos a ocuparem até 30% da área dos assentamentos, sem a necessidade de aprovação do Incra, como é hoje.
Cássio Carvalho, assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), argumenta que o limite de 30% é significativo e pode "desconfigurar" as características da reforma agrária, criando estímulos ao êxodo rural.
"Os acordos de arrendamento podem também acabar comprometendo a previdência social deles, uma vez que o segurado especial de reforma agrária vai possuir uma outra fonte de renda, e a lei deixa claro que isso não é permitido", acrescenta Carvalho.
O Incra declarou, em nota, que a construção das torres nos assentamentos da reforma agrária está condicionada ao cumprimento da lei e à autorização do órgão. A nota ressalta que as negociações feitas diretamente com assentados não titulados "não têm respaldo legal".
Resistência
Nos últimos dois anos, dois assentamentos fecharam acordo para arrendar terras às eólicas. Mas há conversas avançadas com outras comunidades. As empresas oferecem até apoio para obtenção do título da terra.
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Quero receberÉ o caso do Projeto de Assentamento (PA) Canto da Ilha de Cima, em São Miguel do Gostoso. As famílias receberam uma proposta para arrendar integralmente os 2.238 hectares do assentamento para a construção de um novo parque, a ser administrado pela empresa Neoenergia.
Santos diz que a oferta é para cada família receber R$ 1.200 por ano durante o período de construção, e depois uma parcela referente à produção energética. "Eu não fui muito a favor, porque R$ 100 por mês hoje paga minha energia", diz.
Das 89 famílias que vivem na comunidade, 19 estariam inclinadas a aceitar a proposta da Neoenergia, dizem as lideranças. Caso aceite a proposta, a comunidade terá de deixar de produzir mandioca, caju, milho, couve e frango, entre outros cultivos e criações.
"Essas propostas não têm número. O pagamento é de acordo com o que as torres produzirem. Mas nós não sabemos quanto é isso", diz Ferreira, lembrando que uma das promessas da Neoenergia é o título definitivo da terra. "Quem dá o título é o Incra, não uma empresa de energia eólica", questiona o trabalhador.
A desconfiança faz sentido. Agricultores do Rio Grande do Norte têm se decepcionado com os valores pagos pelas empresas eólicas, como mostrou a Repórter Brasil em reportagem publicada em 6 de dezembro.
Muitos trabalhadores não entendem os detalhes dos acordos que assinam e, em alguns casos, eles dizem que as promessas das empresas não são cumpridas.
O Rio Grande do Norte se vende como grande potência energética do país. E é porque implantou vários parques eólicos de forma totalmente desenfreada. Mas que tipo de exemplo é esse? Potência energética a que custo?
Ravena Alves, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que presta assistência a trabalhadores rurais
Por meio de nota, a Neoenergia disse que a concessão do título definitivo é responsabilidade do Incra, mas ressaltou que a norma do Incra abre margem para essa negociação.
"A companhia tem como princípio manter um diálogo com todos as partes interessadas no desenvolvimento sustentável baseado na transição energética limpa, renovável e justa", diz a Neoenergia (leia na íntegra).
Vento a favor
Alguns assentados, por outro lado, veem com bons olhos as ofertas das empresas eólicas.
No PA Chico Mendes, em Touros, a empresa no local também fez a mesma proposta de facilitar a obtenção do título definitivo da terra, em 2011, quando assinaram o primeiro contrato.
"A empresa pagou todas as causas [do processo]. Não descontou nada da gente", diz o agricultor Laércio Ribeiro, presidente da associação local. O acordo ainda está sendo negociado.
Assim como no PA Brinco de Ouro. O local tem 2.655 hectares e é abraçado por parques eólicos. O agricultor Severino Antônio da Silva considera que a eólicas fizeram as comunidades se desenvolverem, além de ter ajudado na reestruturação das rendas das famílias.
Ele tenta trazer empresas para dentro do assentamento. Os projetos não saíram do papel pela falta do título de domínio, concedido em junho deste ano. "Agora nós já podemos negociar", conta ele, na expectativa de dias melhores.
Tendo um salário fixo, com certeza ia melhorar muito. O pequeno agricultor vive porque vive, né? Trabalha aqui, lá, mas dentro da agricultura, na nossa região, não dá pra manter a família.
Severino Antônio da Silva, agricultor
* Leia a versão completa desta reportagem na Repórter Brasil
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