Avanço das eólicas no mar encurrala comunidade de pescadores no RN

"A gente já está cercado em terra, e agora querem cercar o mar. Para onde a gente vai?", desabafa o pescador Edilson Menezes. Morador da comunidade de pescadores de Enxu Queimado, no Rio Grande do Norte, ele conta que viu a paisagem ao redor e seu modo de vida mudarem com a instalação dos primeiros parques eólicos na região há mais de dez anos. Agora, enxerga uma nova ameaça: a chegada das eólicas ao mar potiguar.

No município de Pedra Grande, onde fica Enxu Queimado, 26% do território está ocupado com parques eólicos. Devido à potência dos ventos no local, a área marítima também tem sido cobiçada para projetos de eólicas offshore, como são chamadas as torres instaladas no mar. Dos 14 parques desse tipo apresentados no estado, 7 estão no litoral da comunidade centenária, segundo o Ibama.

A implementação das offshore no Brasil ainda depende da aprovação de um marco regulatório em discussão no Senado. Mas enquanto elas não saem do papel, a comunidade de aproximadamente 2.400 moradores convive com os transtornos causados por 12 parques eólicos no seu entorno. Juntos, eles somam 124 aerogeradores, vários deles muito próximos das casas.

As empresas responsáveis pelos parques cercaram as dunas vizinhas a Enxu Queimado e também os territórios até então de uso coletivo, deixando livre um único acesso por terra à comunidade, conforme constatou a reportagem. Também aterraram lagoas e desmataram parte da área para instalar as torres que agora tomam a paisagem.

"Antigamente a gente saía suavemente de casa, ia andar pelas dunas sem embaraço. Hoje em dia já tem seu fulano que vem lá de fora, compra terra, passa cerca. Aí a comunidade fica sem poder andar", conta o pescador Nazareno Leão de Oliveiras.

Para os moradores, apesar das promessas de progresso, as empresas só fizeram o mínimo: pavimentaram com paralelepípedos as ruas da comunidade e melhoraram o abastecimento de água das casas.

A presidente da colônia de pescadores de Enxu, Maria Joelma Martins, diz também que as promessas de geração de empregos não se concretizaram. Foram poucos os moradores que chegaram a trabalhar na construção dos parques eólicos e, quando a obra terminou, a maioria foi demitida. "Os que vieram de fora foram embora, e os daqui voltaram para a pesca", lembra.

Ela diz também que a comunidade não foi consultada para a instalação das eólicas, seja em terra ou no mar.

O Grupo Serveng, um dos que operam em Enxu, disse em nota que emprega mão de obra local e que seus empreendimentos estão em propriedades privadas arrendadas, desconhecendo cercas em áreas públicas ou protegidas. Leia a nota completa.

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A Copel, operadora de outros três parques eólicos que cercam Enxu, foi procurada, mas não respondeu.

Pescador em Enxu Queimado
Pescador em Enxu Queimado Imagem: MARIANA GREIF/Repórter Brasil

Indefinição jurídica e receio dos pescadores

No fim do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou o Marco Legal das eólicas offshore (projeto de lei 5.932/2023), mas o projeto ainda aguarda discussão no Senado e segue sem prazo para votação.

Apesar disso, o Ibama abriu em 2019 um cadastro para registrar os pedidos de interessados em licenciar parques. Essas solicitações deverão ser analisadas pelo Ibama somente após a sanção do Marco Legal e a outorga da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), explica Eduardo Wagner, coordenador de Licenciamento Ambiental de Energia Nuclear, Térmica, Eólica e de outras Fontes Alternativas do órgão.

Ele afirma que os projetos "com certeza não vão acontecer da forma como foram apresentados".

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Segundo a advogada Vivian Oliveira, especialista em energia, há uma forte pressão de empresas do setor para que a regulamentação aconteça o mais breve possível. "As empresas querem este ano ainda".

No caso de Enxu, sete projetos estão na fila de interessados, com um total de 714 aerogeradores. O projeto mais próximo está previsto a apenas 5 km da costa, enquanto o mais distante está a 20 km. Na Alemanha, por exemplo, os parques eólicos estão, em média, a 66 km da costa.

Maria Joelma Martins, presidente da Colônia de Pescadores de Enxu Queimado
Maria Joelma Martins, presidente da Colônia de Pescadores de Enxu Queimado Imagem: MARIANA GREIF/Repórter Brasil

Também não há um mapeamento das áreas que podem ou não ser exploradas no Brasil, nem previsão das zonas em que a pesca será proibida. Contudo, especialistas acreditam que serão utilizadas as regras vigentes para as plataformas de petróleo, que proíbem a navegação em um raio de 500 metros.

A proximidade entre a comunidade e os parques e a possível restrição da área de pesca assusta a população de Enxu. "De que vai viver a comunidade?", questiona Oliveiras.

Sem um planejamento adequado, as eólicas offshore podem trazer insegurança alimentar e econômica para pescadores artesanais e até expulsá-los do território, avalia Adryane Gorayeb, coordenadora do Observatório da Energia Eólica e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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"O que percebemos é que o discurso global de energia limpa não se alinha com a realidade local dessas comunidades", afirma.

Para evitar esses impactos, o Brasil se comprometeu a realizar até 2030 o seu Planejamento Espacial Marinho (PEM), que deve mapear os usos econômicos, sociais e ecológicos do mar, a fim de evitar conflitos de setores.

No caso das eólicas offshore, por exemplo, é esse plano que vai definir quais áreas poderão ser exploradas e qual será a distância mínima entre o litoral e os parques.

Mas as associações que representam o setor não estão a fim de esperar e pressionam pela aprovação do marco regulatório sem a conclusão do planejamento. "Nenhuma atividade precisa parar ou esperar o PEM ficar pronto", defendem a Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (Abeeólica) e o Global Wind Energy Council, em nota conjunta enviada à reportagem.

Dunas utilizadas pela comunidade centenária de Enxu Queimado foram cercadas com a chegada das torres eólicas
Dunas utilizadas pela comunidade centenária de Enxu Queimado foram cercadas com a chegada das torres eólicas Imagem: MARIANA GREIF/Repórter Brasil

Elas argumentam que a instalação de parques offshore podem impulsionar geração de empregos, além de transformar o Brasil em uma potência global de energia renovável. Ainda segundo a nota, serão realizados estudos para mapear as comunidades e atividades impactadas. "Qualquer área que venha a ter seu licenciamento analisado irá obrigatoriamente ouvir a população do entorno", continua. Leia os posicionamentos na íntegra.

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Para minimizar esses conflitos, alguns países têm apostado em regras de compensação econômica. Na França há uma distribuição de recursos do fundo fiscal de energia eólica offshore aos municípios costeiros afetados. Já na Dinamarca, os proprietários dos parques são obrigados a compensar os pescadores pela perda de rendimento e os moradores da costa pela depreciação dos imóveis causada pelas usinas.

Para os moradores de Enxu Queimado, falta ao Brasil incluir as pessoas afetadas nesses debates. "O que as empresas colocam [em seus projetos] como água, para a comunidade é vida. É o território onde ela se diverte, onde ela trabalha, onde ela vivencia sua fé. É onde ela promove a proteção do meio ambiente", afirma João Paulo Diogo, coordenador do Programa Terra e Território da Assessoria Cirandas, que está auxiliando a comunidade.

* Esta reportagem foi produzida com o apoio da Thomson Reuters Foundation

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