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O cotidiano da violência no Rio: as histórias por trás das imagens de 2021

Policial durante operação contra o narcotráfico na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro - Ricardo Moraes/Reuters
Policial durante operação contra o narcotráfico na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro Imagem: Ricardo Moraes/Reuters

29/12/2021 04h00Atualizada em 29/12/2021 09h37

De imigrantes tentando chegar à Europa e aos Estados Unidos até conflitos armados e protestos ao redor do mundo, os fotógrafos da agência Reuters testemunharam alguns dos eventos mais importantes do ano.
Abaixo se encontra uma seleção de algumas fotos excepcionais registradas pela Reuters em 2021, juntamente com as histórias por trás delas, contadas diretamente pelos fotógrafos que as tiraram.

O UOL separou essas imagens em cinco textos que serão publicados ao longo da semana. Este é o terceiro, o primeiro você pode ver aqui e o segundo, aqui.

Ricardo Moraes: "Ruas vazias e silenciosas, foi como encontrei a favela do Jacarezinho quando cheguei para cobrir uma operação policial que terminaria em 28 mortes, a mais letal na história do Rio de Janeiro. Com o comércio fechado e sem o movimento constante normal de pessoas e motos, a tensão era palpável. Após caminhar pela comunidade por duas horas sem encontrar o que fotografar, considerei desistir.

Continuei circulando e me deparei com um grupo de policiais realizando uma incursão por becos escuros da favela. Tirando fotos com cuidado, pouco a pouco, para evitar que me obrigassem a partir, os segui pelas ruas. Àquela altura, a operação já durava horas e assim que o som dos disparos cessou, os moradores começaram lentamente a retomar sua rotina e o comércio começou a reabrir.

O controle do território por narcotraficantes faz com que a favela do Jacarezinho -e os trabalhadores e famílias que ali vivem- esteja acostumada a surtos diários de violência, e aquele dia não foi diferente. Às vezes, câmeras podem causar mais alvoroço que as armas da polícia.

A polícia, ainda trabalhando, avançava pelos becos, apontando suas armas em todas as direções. Eu passei por dois bares onde as pessoas assistiam ao noticiário ou conversavam na rua. Quando os policiais passavam com suas armas, os moradores nem demonstravam reação. Eles conversavam, riam e faziam piada, enquanto os policiais tensos procuravam pelos membros de uma gangue.

Ao final do dia, 28 pessoas foram mortas, incluindo um policial."

Achraf, 16, chora enquanto nada usando garrafas como boias, perto da cerca entre a fronteira hispano-marroquina em Ceuta, Espanha - Jon Nazca/Reuters - Jon Nazca/Reuters
Achraf, 16, chora enquanto nada usando garrafas como boias, perto da cerca entre a fronteira hispano-marroquina em Ceuta, Espanha
Imagem: Jon Nazca/Reuters

Jon Nazca: "O sul da Espanha é lar de uma das rotas de imigração mais letais do planeta. Entre os continentes europeu e africano se desenrola um constante drama humanitário. Pessoas de toda a África, principalmente marroquinos e argelinos, enfrentam o mar em pequenos barcos, cruzando o estreito de Gibraltar, o Mediterrâneo e o Atlântico na tentativa de chegar à Europa. Eles fogem de guerra, pobreza e ditaduras em seus países de origem. Mais de 10 mil imigrantes de todas as idades cruzaram a fronteira durante uma única semana em meados de maio, muitos deles crianças e mães com bebês.

Um dos imigrantes que realizou a jornada foi Achraf, 16, que nadou do Marrocos até o enclave espanhol de Ceuta. Tirei sua foto da costa, enquanto ele nadava em meu segundo dia de trabalho ali.

Quando cheguei à fronteira entre a Espanha e o Marrocos, a sensação era de que me encontrava em um cenário de filme de guerra. Centenas de imigrantes nadavam desesperadamente a toda velocidade rumo ao solo espanhol, enquanto outros milhares descansavam na costa, exaustos, após chegarem à Espanha.

Soldados em tanques e barcos de resgate os recebiam na costa e os ajudavam ao longo da praia, enquanto autoridades marroquinas olhavam impassíveis.

Entre todos os que nadavam, um chamou particularmente minha atenção. Era Achraf, o único que improvisou uma boia com nove garrafas plásticas amarradas ao redor de seu corpo, caso perdesse suas forças.

Do momento em que tirei sua primeira foto até sua chegada em terra firme, ele nadou por quase uma hora sem descanso. O calor era forte, mas a água do mar estava gelada. O segui ao longo de toda a costa por mais de 500 metros, enquanto ele tentava evitar os soldados posicionados na praia e escapar para o interior. Enquanto nadava, Achraf implorava aos soldados entre lágrimas. 'Tentem nos entender, pelo amor de Deus.' 'Prefiro morrer de frio, não quero voltar, não tenho nenhuma família no Marrocos.'

Tirava fotos e gravava um vídeo ao mesmo tempo, um desafio carregando duas câmeras, mas consegui registrar o desespero de Achraf e seu choro quando percebeu que seria detido pelos soldados. Ele chegou à costa, mas seria preso e enviado de volta ao Marrocos. Ele implorava aos soldados: 'Eles vão bater em mim, por favor, não quero voltar'.

Ao mesmo tempo, não sabia nada sobre a vida de Achraf no Marrocos, por que tinha optado por arriscar tudo tão jovem, mas fiquei intrigado por sua inteligência em improvisar uma boia para assegurar que não morreria no mar. Posteriormente, soube que sua mãe o abandonou quando era pequeno e sua mãe adotiva tinha morrido. Agora ele vivia com uma terceira mulher. Achraf não tinha absolutamente ninguém no Marrocos e estava apenas tentando escapar para encontrar uma vida melhor na Europa."

Um homem líbio, que sofreu queimaduras graves quando combatia um incêndio em um barco de imigrantes, e sua filha, também ferida pelo fogo, aguardam para ser evacuados para a costa da ilha de Lampedusa, no oeste do mar Mediterrâneo - Darrin Zammit Lupi/Reuters - Darrin Zammit Lupi/Reuters
Um homem líbio e sua filhas aguardam para ser evacuados após se queimarem em embarcação
Imagem: Darrin Zammit Lupi/Reuters

Darrin Zammit Lupi: "Passei várias semanas durante o verão de 2021 a bordo do navio de uma ONG de resgate de imigrantes, o Sea-Watch 3, operando na região central do Mediterrâneo. Durante aquele período, nós realizamos várias operações de resgate. O segundo resgate ocorreu ao amanhecer de 30 de julho, um barco que partiu da costa líbia com 64 pessoas.

Quando chegamos à pequena embarcação de madeira superlotada, os imigrantes exibiam queimaduras horríveis causadas por um incêndio. Alguém estava fumando perto de alguns galões cheios de combustível e um deles se inflamou repentinamente.

Sem um instante de hesitação, Osama, um líbio que viajava com sua esposa e seis filhos, agarrou o tanque quando ele foi engolfado pelas chamas e o atirou no mar.

Sua ação, aos meus olhos, o torna um herói e ele sem dúvida salvou vidas. Mas Osama sofreu queimaduras graves nos braços e pernas. Seu filho de 12 anos ficou em estado crítico, com queimaduras horrendas por todo o corpo e duas de suas filhas sofreram queimaduras sérias nas mãos e pés.

O que testemunhei permanecerá comigo por muito tempo. A visão de pele queimada se desprendendo das pessoas enquanto gemem, choram e gritam em agonia não é algo que alguém esqueça.

Mais tarde naquela noite, com o quadro do filho de Osama se deteriorando rapidamente e o medo muito real de que ele não sobreviveria àquela noite, a Guarda Costeira italiana concordou em evacuá-lo para Lampedusa juntamente com 14 outros familiares e pessoas feridas. Esta foto foi tirada enquanto aguardávamos pela evacuação. Em lágrimas, Osama abraçava sua filha de 16 anos, ambos claramente sentindo dores e sob intenso choque, um momento paradoxal de beleza silenciosa, pungente, de partir o coração, em meio ao horror.

De Lampedusa, eles foram imediatamente transportados de helicóptero para a Sicília, onde passaram várias semanas se recuperando no hospital. Assim que todos se recuperaram plenamente, toda a família foi reunida e, após um breve período em um centro para imigrantes, foi transferida para a Alemanha."

Imigrantes descem de barco após terem cruzado o canal da Mancha, em Dungeness, Reino Unido - Henry Nicholls/Reuters - Henry Nicholls/Reuters
Imigrantes descem de barco após terem cruzado o canal da Mancha, em Dungeness, Reino Unido
Imagem: Henry Nicholls/Reuters

Henry Nicholls: "Milhares de imigrantes fogem por ano de guerra e da pobreza no Oriente Médio e na África e fazem uma perigosa travessia do canal da Mancha, em busca de uma vida melhor no Reino Unido. O canal é um dos trajetos marítimos mais movimentados do mundo e suas correntes são fortes. Traficantes de seres humanos geralmente sobrecarregam seus botes, que mal conseguem se manter à tona e ficam à mercê das ondas enquanto tentam chegar à costa britânica.

Em novembro, após vários dias de ventos fortes e grandes ondas no canal, houve uma calmaria de 24 horas, que tornaria as travessias menos perigosas. Eu esperava que um grande número de imigrantes tentaria a travessia naquele dia, mesmo com as temperaturas congelantes.

A potencial extensão de costa para desembarque é vasta. Mas, usando uma mistura de rastreamento de embarcações de resgate e aplicativos de previsão de remessas marítimas, é possível identificar pontos prováveis de travessia.

A imagem mostra um barco de imigrantes, com várias crianças, desembarcando na praia em Dungeness. Foi o quarto ou quinto barco escoltado até a costa naquele dia por equipes de resgate da Royal National Lifeboat Institution.

As crianças estavam notavelmente calmas. Mas os adultos a bordo exibiam um grande senso de alívio. Estavam física e emocionalmente exaustos, cientes do risco extremo que correram.

Reconheci o menino com o casaco xadrez colorido das fotos tiradas por meu colega Gonzalo Fuentes, de um grupo que tinha partido da costa francesa mais cedo naquele dia. Foi um alívio maravilhoso saber que conseguiram atravessar em segurança, após seis horas no mar."

Reação de Yoshia quando seu filho, Mark, e sua sobrinha, Gail, a surpreendem em sua primeira visita em um ano, após as restrições devido à covid-19 serem suspensas no Nikkei Manor, um asilo que atende principalmente nipo-americanos, em Seattle, Washington, EUA - Lindsey Wasson/Reuters - Lindsey Wasson/Reuters
Yoshia se anima ao rever seu filho Mark e sua sobrinha Gail após um anos por causa da pandemia de covid-19
Imagem: Lindsey Wasson/Reuters

Lindsey Wasson: "Quando o estado de Washington anunciou que os asilos com moradores vacinados contra covid-19 poderiam retomar as visitas pessoais, pude visitar o Nikkei Manor, em Seattle, para fotografar uma reunião familiar.

Mark Uomoto e sua prima, Gail Yamada, vieram fazer uma surpresa para a mãe de 98 anos de Mark, Yoshia 'Yo' Uomoto, a primeira visita deles em mais de um ano, já que durante a pandemia a família só podia realizar visitas por trás das janelas do saguão.

Para registrar o momento, fui ao quarto de Yoshia com uma funcionária para lhe dizer que eu estava lá para uma surpresa e lhe pedir que fechasse os olhos. Com os olhos de Yoshia cobertos, Mark e Gail entraram segurando as flores e um balão. Mark simplesmente se reclinou e disse baixinho, 'Oi, mãe'. Yoshia descobriu os olhos e exclamou: 'Que bom ver você!' e esticou os braços para abraça-lo. Eu me senti muito afortunada por estar presente no reencontro deles.

A foto se tornou viral e sei que Mark e sua família ficaram empolgados ao serem entrevistados pelo programa 'Today'. Acho que a foto repercutiu entre muitas pessoas por representar os sentimentos de empolgação e alívio que todos estavam experimentando, à medida que se reencontravam com seus familiares após um ano tão difícil. Ela teve muito significado pessoal para mim, já que minha bisavó viveu em Nikkei Manor por vários anos, antes de falecer em 2011."