"Era inimaginável ver alguém defendendo a volta da ditadura, como hoje no Brasil", diz a cineasta Flávia Castro
Diretora do filme “Deslembro”, em competição no Festival Biarritz América Latina, a cineasta carioca Flávia Castro conversou com a RFI nessa cidade do sudoeste da França. A partir da história de uma família exilada em Paris que volta ao Rio de Janeiro após a aprovação no Brasil da lei da Anistia em 1979 – em parte um filme autobiográfico – Flávia explora nesse longa a relação de uma adolescente, personagem central do filme, com a “memória”.
“Deslembro”, cujo título vem de um poema de Fernando Pessoa, começa com o retorno da adolescente Joana, apaixonada por música e literatura, à terra natal que ela mal conhece e mostra reticência em conhecê-la. Uma história que mistura o presente dessa volta ao Rio – o contato com a natureza exuberante e a iniciação amorosa – com um passado esquecido, pois Joana aos poucos começa a resgatar as lembranças de um pai, militante de esquerda, assassinado pela ditadura militar no Brasil.
O filme é de certa maneira uma continuidade de “Diário de uma Busca”, de 2010, (prêmio de melhor documentário no Festival de Biarritz e no Festival do Rio), no qual a cineasta tenta desvendar a morte de seu pai, o jornalista Celso Afonso Gay de Castro, que morreu em circunstâncias suspeitas quando voltou para Porto Alegre, em 1984, após anos de exílio com sua família por vários países.
“O contexto do filme, início dos anos 80 no Rio, é o da minha vida na adolescência, mas não posso dizer que ele é autobiográfico”, diz Flávia. Na verdade, ela começou a pensar em “Deslembro” quando estava editando o documentário sobre o seu pai e sentiu necessidade de recorrer à ficção para abordar questões mais complexas e difíceis como a relação com a memória.
“O Brasil não fez o seu trabalho de memória”
A impunidade em relação aos crimes ocorridos durante a ditadura militar no Brasil é um tema que vem à flor da pele na cineasta: “Quando eu coloco o meu filme no contexto tão tenso do Brasil de hoje eu penso: que trabalho de memória fizemos durante esses anos de governo do PT para chegarmos à situação tão dramática que vivemos hoje no Brasil?”
Segundo Flavia, o Brasil está muito atrasado no processo de resgate de sua memória e longe do fim da impunidade dos crimes cometidos durante a ditadura militar, ao contrário de outros países latino-americanos. “Quase nenhum militar foi punido no Brasil. Tenho a impressão que esse processo começou tarde demais”, desabafa ela, acrescentando: “Era inimaginável há 10 anos atrás você ver alguém defender a volta de uma ditadura. Acho que isso nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo, alguém explicitamente descer na rua e pedir a volta da ditadura. E isso ocorre no Brasil hoje”.
A cineasta se emociona e continua: “? muito louco pensar que há pessoas no Brasil que pensam que Bolsonaro é uma solução. ? muito louco ver torturador sendo incensado... ? deprimente isso” [referência ao discurso do general Antônio Hamilton Mourão que chamou de herói Carlos Brilhante Ustra, falecido coronel e ex-chefe de um dos principais centros de repressão da ditadura em São Paulo, também louvado pelo candidato Jair Bolsonaro durante a votação parlamentar de 17 de abril de 2016, na Câmara dos Deputados, sobre o impeachment de Dilma Rousseff, torturada por Ustra].
Prêmios e projetos
Antes de Biarritz, o longa “Deslembro” de Flávia Castro foi selecionado na seção Horizontes no Festival Internacional de Veneza onde foi bastante aplaudido. O filme deve passar ainda por vários festivais europeus antes de estrear no Brasil em 2019, mas ainda não tem data marcada. Enquanto isso, Flávia Castro já começou a amadurecer o seu novo projeto também sobre a “questão da memória”, que já tem um título: “Retrato de um homem visível”.
O Festival Biarritz América Latina termina em 30 de setembro próximo.
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