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Vacina de Putin contra Covid dificilmente será aceita fora da Rússia, diz sanitarista Gonzalo Vecina

11/08/2020 16h00

Médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), Gonzalo Vecina Neto analisa em entrevista à RFI o anúncio da vacina russa Sputnik V contra a Covid-19, denuncia o "crime de lesa-humanidade" do governo brasileiro contra as "comunidades quilombolas e indígenas" e traça um painel da evolução da pandemia para os próximos meses no Brasil.

RFI: Qual é a sua opinião sobre o anúncio nesta terça-feira (11) do presidente russo, Vladimir Putin, da vacina "Sputnik V" contra a Covid-19?

Gonzalo Vecina Neto: Um medicamento é utilizado para tratar pessoas doentes. Uma vacina é utilizada em pessoas sãs. Então os cuidados para se aprovar uma vacina são muito mais exigentes do que aqueles para aprovar um medicamento. Um dos cuidados fundamentais é que os dados produzidos sobre investigações têm que ser colocados à disposição da comunidade científica para serem criticados. No caso da vacina da Rússia, nenhum desses cuidados foi tomado. Ela está sub-júdice até que os dados produzidos durante a fase de pesquisa clínica e na fase pré-clínica sejam divulgados e submetidos ao conhecimento científico. Se os russos vão aceitar essa vacina, o problema é deles. Fora da Rússia, muito dificilmente essa vacina será aceita. Nós sabemos qual o risco de se morrer de Covid, mas não sabemos qual o risco de se morrer de uma vacina cujo grau de segurança e eficácia desconhecemos.

Segurança do ponto de vista da transparência dos protocolos de pesquisa?

No caso de um medicamento, é preciso conhecer quais são os efeitos colaterais que ele produz. Não existe medicamento sem efeitos colaterais. Fui presidente e criador da Anvisa, a agência nacional de vigilância sanitária do Brasil. Uma vacina tem que ser, antes de qualquer coisa, segura. Isso tem que ser demonstrado. Ela não pode ter efeitos colaterais que sejam piores do que os efeitos produzidos pela doença. Nós estamos falando de uma doença, a Covid-19, que tem uma letalidade relativamente baixa. Ela tem um impacto muito grande na sociedade porque tem uma capacidade de transmissibilidade muito grande. Os testes de segurança da vacina russa são desconhecidos. Enquanto não conhecermos os testes de segurança, não dá para assumir a vacina russa.

A imprensa brasileira chegou a mencionar possíveis parcerias do Brasil para fabricar a vacina russa...

Até onde eu sei, a Fundação Oswaldo Cruz não tem nenhum interesse em se comprometer com essa vacina. O Instituto Butantan já divulgou que não vai produzir a vacina russa. Nós temos duas fábricas de vacinas estatais no país, o Butantã e a Fundação Oswaldo Cruz. Não existe outra fábrica com essa capacidade no Brasil. E a iniciativa privada não tem tradição de produzir vacinas aqui. Nenhuma fábrica nacional ou internacional instalada no Brasil tem capacidade de produção de vacina.

O que se sabe de fato sobre a vacina russa?

Apenas o que permitiram que fosse publicado. Ela foi testada em militares russos voluntários e mais nada... Sabemos que esses militares ficaram confinados e que, ao final dos testes, saíram "todos vivos e andando", há fotos que mostram... Temos que ter muito cuidado ao criticar qualquer coisa nestes tempos de Covid, que são muito complexos, mas temos que ser rigorosos. 

O Brasil ultrapassou recentemente o marco dos 100.000 mortos. Como você vê esse momento brasileiro, num contexto de pandemia?

É importante a gente lembrar de algumas coisas. Por exemplo, não são cem mil mortos. Provavelmente, são 130 mil mortos. Não estão notificados aí um grande número de mortes de síndrome respiratória aguda grave que certamente fazem parte da Covid. Nós sabemos disso comparando os números de 2018, 2019 e 2020 por síndrome aguda respiratória. Esses óbitos poderiam ter sido entre 20% a 30% menores se o governo federal tivesse comandado esse país federativo no sentido do isolamento social, com uma proteção social maior. 60% da população brasileira vive da economia informal, e a economia informal, quando a formal para, se destrói.

A proteção social tardou a chegar para os pobres poderem ter acesso à comida. Pobre só tem acesso à comida andando, correndo atrás da comida todos os dias, e é desse maneira que se contaminam. A prevalência dessa doença entre os semialfabetizados, com baixo nível de vida, negros e pardos, é cinco a seis vezes maior do que no resto da população. Esse é um fenômenos que vimos também em Nova York. E existem grupos de risco no Brasil que estão absolutamente desprotegidos, como os quilombolas e os índios. Em Dourados, no Mato Grosso do Sul, no Xingu, no Amazonas, em Roraima, o Estado brasileiro permitiu a entrada de madeireiros, mineiros, e estes elementos estão levando a epidemia para os índios, que são absolutamente desprotegidos do ponto de vista imunológico. É um crime de lesa-humanidade o que está acontecendo no Brasil.

Como você vê hoje a evolução da Covid-19 no Brasil, para os próximos meses?

Essa doença desbanca os donos de bola de cristal. Eu não vou tentar enxergar muito longe, eu diria que mantidas as mesmas condições de hoje, espero que aconteça nos próximos quatro meses o que houve nos quatro meses anteriores. No entanto, em algumas localidades do Brasil, como Manaus, temos feito estudos de soroprevalência, utilizando os doadores de sangue. O banco de sangue de Manaus tem uma soroprevalência de 50% em maio, entre doadores de 18 a 60 anos. Ou seja, metade da população de Manaus testou positivo para a Covid-19. Provavelmente, no Amazonas, estamos perto de uma imunidade coletiva em relação, por exemplo, a São Paulo, onde temos uma soroprevalência de cerca de 10%. O Brasil é um país muito grande, vamos ter diferentes realidades.

Neste momento, temos a doença avançando em oito estados, em decréscimo em 10 estados e mantida num pico elevado no restante do país. Acho que a doença vai continuar, porque existe muita gente que não saiu para a rua, como a população escolar. Entre alunos, professores e trabalhadores da educação temos cerca de 60 milhões de pessoas. Se voltarem as aulas, uma boa parte desses 60 milhões voltarão a circular e certamente haverá um repique de casos. Como será esse repique, ainda não sabemos...