Topo

Crise dos submarinos: "França não faz mais parte de aliança global de segurança", diz analista

16/09/2021 17h41

O convite feito pelos Estados Unidos à Austrália para integrar junto com o Reino Unido uma nova aliança estratégica, a Aukus, levando Camberra a romper um contrato de € 56 bilhões que o país tinha fechado com a França em 2016, para a venda de 12 submarinos convencionais, abriu uma crise entre Paris e Washington. Os EUA vão fornecer submarinos nucleares aos australianos para atuarem em parceria na região Indo-Pacífico. Analistas estimam que a França foi desprezada como país aliado.

As autoridades francesas cancelaram uma noite de gala marcada para esta sexta-feira  (17) em Washington, após a quebra do "contrato do século" para fornecer submarinos franceses à Austrália, o que gerou uma crise transatlântica. Esta recepção, na residência do embaixador francês em Washington, deveria comemorar o aniversário de uma batalha naval decisiva da Guerra da Independência dos Estados Unidos, concluída com uma vitória da frota francesa sobre a britânica, em 5 de setembro de 1781.

O "golpe nas costas", a "traição de um aliado", como qualificou o chanceler francês, Jean-Yves Le Drian, referindo-se à Austrália, teve o efeito de um tapa na cara da França, na avaliação de Jean-Dominique Merchet, jornalista especializado em questões militares, autor do blogue "Secret Defense". "A escolha dos australianos ilustra o estabelecimento de uma nova aliança global de segurança da qual a França não faz mais parte", disse Merchet em entrevista ao portal de notícias France Info

"É triste dizer, mas isso mostra que a França quer jogar num terreno que não é mais seu, seja em termos diplomáticos ou militares. Queremos desempenhar um papel desproporcional às nossas capacidades", opina o jornalista. Ele reconhece que muitos países têm interesses estratégicos na região Indo-Pacífico. "Mas não é porque a França possui a Nova Caledônia e o Taiti, e também é uma potência nuclear com assento no Conselho de Segurança da ONU, que ela tem os meios de bancar o jogo", afirma. "Para australianos, japoneses e outros países, a garantia de segurança é americana, americana, americana", frisou o especialista.

Merchet destaca que "é a primeira vez na história que um país que é uma democracia [no caso os EUA], do qual se espera que não promova desordem internacional ou uma corrida armamentista, vende um material extremamente sofisticado para um de seus aliados". 

"Não é um submarino que possui armas nucleares, mas é um submarino que é movido por uma usina nuclear a bordo. Não existe nem mesmo uma usina nuclear civil na Austrália. É um pouco como abrir uma caixa de Pandora. Quem vai impedir amanhã os chineses de venderem submarinos de ataque nuclear ao Paquistão ou os russos de venderem submarinos de ataque nuclear à Argélia, por exemplo?", se interroga o jornalista francês.

A Casa Branca afirma que funcionários do governo mantiveram conversas de "alto nível" com colegas franceses, antes de anunciar um acordo com a Austrália para o fornecimento dos submarinos americanos, mas a França desmente essa declaração e insiste que foi pega de surpresa.

"Não tínhamos sido informados antes que as primeiras notícias desse acordo fossem publicadas na imprensa americana e australiana, poucas horas antes do anúncio oficial de Joe Biden", disse um porta-voz da embaixada francesa em Washington.

"Administração Biden esgotou seu crédito inicial em Paris"

Para Mathieu Duchâtel, doutor em ciência política e diretor do programa Ásia do Instituto Montaigne, especialista em questões de segurança no leste asiático, esse pacto surpresa pode complicar as relações entre a França e os Estados Unidos.

"Devemos esperar uma iniciativa americana para compensar a França ou não?" O método do anúncio repentino com grande alarido ontem à noite demonstra um certo desprezo pelos interesses franceses [...] Em todo o caso, o que é certo é que em poucos meses a administração Biden esgotou o seu crédito inicial em Paris, que se baseava nas próprias promessas de que seria um governo que consultaria os aliados europeus para qualquer decisão importante", disse Duchâtel à RFI

Aceleração após retirada do Agenanistão

Após a retirada americana do Afeganistão, os Estados Unidos decidiram colocar todas as suas forças no desenvolvimento de sua política de segurança na zona do Indo-Pacífico. Trata-se de uma resposta às ambições da China nesta região do mundo que tem sido marcada por litígios de fronteiras marítimas e territoriais há vários anos.

Esse objetivo americano não é novo. A secretária de Estado Hillary Clinton fez da mudança de eixo de interesses do Oriente Médio para a Ásia uma prioridade em 2007, mas desde então a Primavera Árabe e a situação no Afeganistão foram mais ou menos adiando essa nova abordagem geoestratégica. Donald Trump compartilhou essa visão e, agora, Joe Biden decidiu acelerar, fechando uma aliança com a Austrália e o Reino Unido, sob o risco de se desentender com um parceiro de longa data, neste caso a França.

O presidente americano também anunciou a realização de uma reunião do Quad (Diálogo Quadrilateral para Segurança) no dia 24 de setembro, em Washington, com a presença dos primeiros-ministros da Austrália, da Índia e do Japão para relançar um formato diplomático que vinha vegetando há vários anos e que deve agora desempenhar um papel central na preservação da paz e da segurança nesta região.

"Contenção"

A China imediatamente se sentiu alvo da nova aliança Aukus e denunciou um contrato "extremamente irresponsável", segundo o  correspondente local da RFI, Stéphane Lagarde. Entre os especialistas entrevistados pela mídia chinesa nesta quinta-feira (16), o termo mais citado era "contenção". Os Estados Unidos e seus aliados tentariam mais uma vez conter o desenvolvimento do poderio chinês no Pacífico.

Para o regime comunista, os três países levantaram uma pedra que vai cair sobre seus pés, como diz uma expressão chinesa. "A cooperação entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália em submarinos nucleares mina seriamente a paz e a estabilidade regional, e intensifica a corrida armamentista", declarou na tarde de quinta-feira, durante sua coletiva de imprensa diária, o porta-voz da diplomacia chinesa, Zhao Lijian.

O Global Times denuncia mais uma vez "uma mentalidade de guerra fria" e um "ato de extrema hostilidade", a clássica retórica da propaganda comunista, mas também uma preocupação real. Sob anonimato, um militar citado pelo jornal nacionalista disse que ao se tornar uma ameaça nuclear para outros países, "a Austrália é agora um alvo potencial em caso de guerra total".