Saúde na Amazônia: 'Minha filha esperou três anos por uma endoscopia'
A distância média a ser percorrida para se conseguir atendimento de emergência pelo SUS na Amazônia é de aproximadamente 15 km, segundo um levantamento de 2019. Para tentar amenizar essa demanda e dar visibilidade para o problema, uma ONG de médicos voluntários, a maioria de São Paulo, resolveu fazer expedições para tratar populações na região do rio Tapajós, no Pará.
Rosemiro Peres de Sousa, 46 anos, acompanhava a filha Keliane, 24 anos, para uma endoscopia no Hospital Municipal de Belterra, na semana passada. Há três anos ela esperava por um exame de endoscopia pelo SUS, por causa de dores persistentes no abdome.
"Ainda bem que teve essa parceria da Secretaria Municipal de Saúde e essa ONG", diz o pai, que se emociona e interrompe o relato, retendo as lágrimas e pedindo desculpas. "Aqui temos o clínico geral, mas o acesso ao especialista pelo SUS demora", acrescenta. Ele explica ainda que ir para Santarém, a 45 km, que tem um centro médico mais abrangente, envolveria gastos adicionais.
O caso acima é apenas um dos muitos vistos pela equipe da Zoé, composta de médicos, enfermeiros, residentes, estudantes de medicina, um administrador e uma equipe de comunicação - todos voluntários - e que refletem a dificuldade de acesso à saúde em regiões como a Amazônia. A maior parte do corpo médico é ligado ao Hospital Sírio-Libanês, uma referência em São Paulo.
Em sua terceira expedição à região, os integrantes da ONG Zoé realizaram 108 exames endoscópicos e 53 cirurgias de hérnia durante uma semana, de 29 de novembro a 5 de dezembro. Três casos de câncer foram detectados, sendo que um em estágio precoce, com altas chances de cura, mostrando a importância desse tipo de exame.
Operando na Amazônia
A equipe médica da Zoé levou ainda todo o equipamento necessário - obtido por meio de doações - para montar um centro cirúrgico no hospital de Belterra. A prioridade foi dada a cirurgias de hérnia e exames endoscópicos.
O anestesista Enis Donizetti Silva, que participa ativamente das ações da Zoé, explica que, apesar da eficácia do SUS, há muitos lugares no Brasil onde as pessoas se sentem abandonadas. "Essas expedições têm o caráter de, na minha opinião, revelar essa situação, mexer na ferida e, de certa forma, atrair a atenção do governo, do Estado", diz.
"A gente vem aqui, mas não vai, infelizmente, trazer uma solução definitiva; vamos ajudar dezenas, centenas de pessoas, mas não vamos resolver o problema", acrescenta o especialista.
Povo isolado
O endoscopista Marco Aurélio D'Assunção, presidente da ONG, visitou a população indígena Zoé, que dá nome à organização, onde realizou exames em três mulheres. O povo Zoé vive em uma área de floresta densa. O médico chegou ao local em um avião bimotor. A etnia foi contatada pela primeira vez há apenas três décadas. A ação médica foi uma parceria da ONG com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
A saúde da população na Amazônia Legal - Pará, Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso, Amapá, Tocantins, Maranhão e Roraima - não evolui como no resto do país, segundo estudo divulgado em novembro pelo projeto Amazônia 2030, que reúne um grupo de pesquisadores brasileiros cujo objetivo é desenvolver planos de ações para a região.
"Embora a cobertura populacional da atenção básica seja relativamente grande na região, a razão entre recursos e a área do território, bem como a infraestrutura das unidades básicas de saúde (UBS) são bastante inferiores ao encontrado no restante do país", diz o relatório da Amazônia 2030.
A escassez de médicos também é um fator de alerta. Segundo dados do final da década passada, a relação de médicos por habitantes na região representava a metade do resto do país. No caso de especialistas como cardiologistas e oncologistas, por exemplo, em média, o número de profissionais para cada mil habitantes da Amazônia Legal era cerca de três vezes menor que no restante do país.
Espera por cirurgia pode levar anos
"Eu sinto na pele, eu vivo a realidade", conta Aldeíse, cozinheira, que vive numa comunidade ribeirinha a três horas de barco de Santarém. "No caso de uma doença mais grave ou uma queda, a pessoa precisa ir para Santarém e entrar na fila do SUS. Se for uma emergência, você espera dois dias. Se for uma fratura não exposta, vai esperar uma semana, quinze dias até ter uma vaga para uma cirurgia. No caso de apendicite ou picada de cobra, o atendimento é mais rápido. Mas tem pessoas que esperam anos por uma cirurgia."
"A Amazônia é um território muito vasto, existem muitas comunidades que vivem distantes de centros de saúde e é muito complexa a logística para se levar assistência médica", diz Jociclélio Castro Macedo, prefeito de Belterra, que também é médico. "Muitas vezes, a política de atração para médicos para essas partes distantes da Amazônia não é compensatória; às vezes até se oferece um salário que atrai o médico, mas muitas vezes ele chega e não tem condições para executar um bom trabalho, então ele prefere se manter afastado dessas regiões longínquas e ficar nos grandes centros das cidades", acrescenta.
"Há populações que vivem a dois, três dias de viagem de barco, então imagine o quanto se gastaria para deslocar um médico até essas localidades", explica Macedo. "Essas ações como a da Zoé são importantes; Belterra é um município pobre, com baixa arrecadação, não teríamos condições de pagar por uma equipe dessa natureza", completa.
A ONG Zoé estuda a perspectiva de realizar mais expedições com regularidade a partir de 2022. Para isso, faz um apelo a doações de pessoas físicas ou jurídicas. Mais informações podem ser obtidas no site da organização.
*A repórter viajou à região a convite da Ong Zoé
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