Radiografia do voto brasileiro na Argentina e a incógnita em torno do voto estudantil
Buenos Aires é a capital latino-americana com mais eleitores brasileiros e onde o número de inscrições para votar no próximo domingo (2) mais cresceu em todo o continente. A reta final da campanha eleitoral brasileira na Argentina ocorre em meio ao atentado contra a vice-presidente Cristina Kirchner.
Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
A uma semana das eleições, a principal incógnita sobre o capítulo argentino do voto brasileiro no exterior é quanto ao comportamento do voto universitário, principal segmento entre os eleitores brasileiros na Argentina.
A maior quantidade de brasileiros na América Latina fica no Paraguai (240.000), seguido pela Argentina (89.020). Mas, no que se refere, especificamente, a eleitores aptos a votar, Buenos Aires é a capital latino-americana com mais eleitores brasileiros (11.570), seguida pela Cidade do México (3.950), por Santiago (3.295) e por Montevidéu (2.410). A capital paraguaia só aparece em quinto lugar com 2.258 eleitores brasileiros.
Buenos Aires triplica a Cidade do México e quintuplica Assunção devido ao número recorde de brasileiros que transferiram o título de eleitor à Argentina, acima de qualquer outro país na região.
Desde as últimas eleições, em 2018, o crescimento de eleitores brasileiros em Buenos Aires chega a 86,7%, passando de 6.198 a 11.570. Das oito seções há quatro anos, o número quase duplicou a 15 em 2022. Considerando a quantidade de eleitores em toda a Argentina, o aumento foi de 78%.
"Aqui o número de eleitores é muito expressivo em comparação com outros colégios eleitorais no exterior. A população brasileira na Argentina está estimada em 89 mil residentes, mas esse é um dado anterior à pandemia. Dessa comunidade, metade está concentrada aqui na cidade de Buenos Aires; a outra metade na província de Buenos Aires. Nesse grupo, destaca-se a participação de estudantes. E, desse grupo de estudantes, a maior parte é formada por estudantes de Medicina, um segmento que começa em 2011 e que cresce com força a partir de 2015", descreve à RFI o cônsul-geral em Buenos Aires, Paulo Amora.
É justamente nesse segmento de brasileiros, um universo em torno de 10 mil estudantes de Medicina, onde está a grande incógnita destas eleições.
Pandemia alterou a população brasileira na Argentina
Entre abril e junho de 2020, no auge da pandemia, cerca de nove mil estudantes foram repatriados. A Argentina vivia um dos mais estritos confinamentos do mundo e a grande maioria dos universitários preferiu voltar ao Brasil, através das operações de repatriação organizadas pelo Consulado.
Contraditoriamente, se por um lado, cerca de 9 mil estudantes retornaram ao Brasil, o número de eleitores inscritos na Argentina aumentou em 5.600.
Quem são esses eleitores? Estudantes que, depois da pandemia, voltaram à Argentina? São novos estudantes? E quantos desses estão mesmo na Argentina e vão comparecer?
Essas são as perguntas que inquietam os organizadores destas eleições e os militantes que fazem campanha pela Argentina.
"A curiosidade será observar o comparecimento ou não desse número de 11.570 já que quase nove mil foram repatriados. O que nós supomos é que não fizeram o devido registro no tribunal do título e que constam, portanto, como eleitores aqui em Buenos Aires, quando já não o são. Mas também podem ter retornado à Argentina. Não sabemos", avalia Paulo Amora.
Mapa do voto em 2018
Há quatro anos, em Buenos Aires, Jair Bolsonaro (36,4%) ganhou no primeiro turno com mais de 10 pontos à frente de Fernando Haddad (25,9%) e com mais de 16 pontos à frente de Ciro Gomes (19,8%). Daquela vez, os estudantes brasileiros de Medicina votaram, na sua maioria, em Bolsonaro.
No segundo turno, no entanto, o candidato do PT se recuperou, com sete pontos à frente em Buenos Aires (50% contra 43%). Na soma de todo o país, Haddad (49%) ficou cinco pontos à frente de Bolsonaro (44%). Considerando apenas os votos válidos, o embate foi de 53,4% contra 46,6%.
Nos dois turnos, metade dos eleitores compareceram. Desta vez, quatro anos depois, qual será o comportamento desse segmento mais significativo entre os eleitores brasileiros na Argentina?
Espelho da tendência no Brasil
A jornalista Leticia Navarro, uma referência na comunidade, criadora do "Aires do Brasil", primeiro canal de notícias da comunidade brasileira na Argentina, vê repetir deste lado da fronteira a mesma tendência da polarização política que hoje divide a sociedade brasileira.
"Creio que nesta eleição tem um diferencial em relação à anterior. Vejo maior engajamento e mais manifestações nas redes sociais por parte da comunidade brasileira. E, nesses debates, observamos que há um posicionamento bastante esquerdista. É algo que chama a atenção", aponta Leticia à RFI.
"Acho que está parecido com o cenário brasileiro: uma polarização, mas com uma maioria esquerdista, mas também uma força à direita, relacionada com Bolsonaro", compara.
A maioria dos estudantes vêm de famílias do interior do Brasil, onde Bolsonaro obteve mais votos. Em qual dos pólos estão os estudantes de Medicina, quatro anos depois?
A estudante de Medicina, Júlia Sousa, de 18 anos, recém-chegada à Argentina observa uma tendência entre os universitários brasileiros.
"O que eu sinto das pessoas com quem convivo, dos estudante da UBA [Universidade de Buenos Aires], tanto da faculdade pública quanto da particular, é que vão votar no Lula. Eles são bem contra o Bolsonaro mesmo. Muita gente vai votar no Bolsonaro também, mas o que eu sinto ao meu redor é que a maioria vai votar no Lula. Os jovens de hoje em dia, a maioria vai votar no Lula, sinceramente", indica Júlia à RFI.
"Há quatro anos, esses estudantes na Argentina votaram em Bolsonaro, tal como a sociedade brasileira votou. Nos últimos anos, a análise apontava que uma grande quantidade desses estudantes é bolsonarista, mas vimos que esse era um voto em disputa porque tem o perfil do voto em Lula: jovens, estudantes da Educação pública e filhos de uma classe média trabalhadora. Fomos conversar com essa comunidade", explica à RFI o coordenador do Núcleo do PT na Argentina, Paulo Pereira.
Perfil do eleitor brasileiro na Argentina
Foi justamente o voto em Bolsonaro em 2018 a motivação para o Núcleo do PT, único partido que tem feito campanha política local, elaborar o mais minucioso e atualizado estudo sobre o perfil dos eleitores brasileiros na Argentina.
"Foi para a gente uma grande lição do que tínhamos de fazer para 2022: descobrir quem é a nossa comunidade brasileira para podermos conversar", conta Paulo Pereira.
Os integrantes do grupo cruzaram informações de diversos organismos e instituições: do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil ao Registro Nacional das Pessoas da Argentina, passando pelo Departamento de Migrações e até pela Universidade de Buenos Aires.
O resultado do trabalho indica que as mulheres são maioria (57%), que a maior parte (46%) são jovens entre 16 e 34 anos de idade e que aqueles 89 mil residentes antes da pandemia são agora 82 mil, considerando que também chegaram ao país novos estudantes.
Dos 12.746 eleitores brasileiros na Argentina, 91% votam em Buenos Aires, 7% votam em Córdoba (888 eleitores), 2% votam em Mendoza (240) e, nas cidades fronteiriças de Paso de los Libres e Puerto Iguazú, votam 18 e 30 eleitores, respectivamente.
Paulo Pereira acredita que esse elevado aumento do número de brasileiros que transferiram o título para a Argentina tenha sido o resultado da campanha pelo país.
"Quando vemos o crescimento do número de pessoas aptas para votar, isso se dá justamente nos meses em que fizemos a campanha 'Tirar o título para tirar Bolsonaro' [março e maio]. O crescimento foi impressionante. É um fenômeno. Poucos países no mundo podem mostrar esses números de crescimento. Pelo perfil do brasileiro que transferiu o título, mulheres e juventude, acreditamos que vai acompanhar a campanha Lula Presidente. Estamos muito confiantes", acredita Paulo Pereira.
Atentado teve impacto na campanha
No começo de setembro, a vice-presidente Cristina Kirchner sofreu uma tentativa de assassinato. O brasileiro Fernando Sabag Montiel, de 35 anos, residente na Argentina desde a infância, chegou a puxar o gatilho a poucos centímetros do rosto de Cristina Kirchner, mas o tiro falhou.
Esse ataque, com inspiração ideológica e vindo de um brasileiro, acendeu o sinal de alerta na campanha local e na segurança para o pleito.
"Com o atentado à vice-presidente Cristina Kirchner, aumentou a temperatura política na Argentina e, de forma involuntária, colocou a comunidade brasileira no centro dessa discussão também. Nós realmente ficamos preocupados. Suspendemos a campanha Lula Presidente na Argentina por dez dias até esperar ver como seria a retomada das ruas. Esperamos ver se haveria algum episódio de violência [contra militantes de esquerda] ou mesmo de xenofobia [contra brasileiros]. Essa era uma preocupação. Mas passaram os dias e a nossa leitura é que esta deve ser uma eleição tranquila e que a maioria que vai ocupar as ruas nesse dia seja do nosso campo", analisa Paulo Pereira.
"Sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos vão estar com a gente nas ruas, ajudando a gente a garantir essa segurança para que a eleição brasileira na Argentina transcorra em absolutamente paz", reforça.
Em entrevista com a RFI, o cônsul-geral adjunto em Buenos Aires, Paulo Amora, também acredita que, no próximo domingo, a festa da Democracia vai superar qualquer polarização política.
"Vamos nos preparar para receber todo esse contingente nas 15 seções que temos já organizadas para acomodar esse número de eleitores. Tomamos as medidas cabíveis na área de segurança. E, a exemplo dos anos anteriores, esperamos que transcorram as eleições em clima de paz, em clima de tranquilidade e que possam todos exercer o seu direito cívico e que possamos também celebrar a democracia", confia Paulo Amora.
Em 2018, com bem menos eleitores do que agora, militantes de esquerda argentinos e eleitores brasileiros protagonizaram um princípio de distúrbio em frente à embaixada.
Os argentinos colocaram sobre o asfalto uma bandeira do Brasil com palavras de ordem contra Bolsonaro. Os brasileiros não gostaram nem de ver a bandeira no chão nem que os argentinos dessem o palpite sobre o pleito.
A segurança neste ano, sobretudo depois de um atentado, será reforçada.
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