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Artista brasileira reflete olhar decolonial sobre mantos tupinambás em Paris

21/10/2022 13h36

Tupi or not Tupi: a expressão criada por Oswald de Andrade em seu manifesto antropófago, na aurora da Semana de Arte Moderna, canibaliza o delírio hamletiano de Shakespeare - To be or not to be, that's the question. Um século depois, a artista brasileira Lívia Melzi decide virar o espelho na direção dos colonizadores em Paris, apropriando-se da antropofagia dos modernos de 1922 para canibalizar o olhar dos europeus sobre a expropriação colonizatória de objetos rituais como os mantos tupinambás.

Tupi or not Tupi: a expressão criada por Oswald de Andrade em seu manifesto antropófago, na aurora da Semana de Arte Moderna, canibaliza o delírio hamletiano de Shakespeare - To be or not to be, that's the question. Um século depois, a artista brasileira Lívia Melzi decide virar o espelho na direção dos colonizadores em Paris, apropriando-se da antropofagia dos modernos de 1922 para canibalizar o olhar dos europeus sobre a expropriação colonizatória de objetos rituais como os mantos tupinambás.

O percurso antropofágico não é exatamente fácil para curadores, jornalistas e visitantes europeus presentes na abertura da exposição da artista brasileira Lívia Melzi, que integra o prestigioso grupo de artistas programados nesta temporada outono-inverno deste que é o maior centro de arte contemporânea da Europa: o Palais de Tokyo, no 16° distrito de Paris.

"Para mim era muito lógico fazer um apelo ao manifesto antropófago.Tem essa questão da vingança presente no Hamlet e também no meu projeto. Mas não se trata da vingança ocidental, como a conhecemos. O título da exposição - Tupi or not Tupi - traz essa primeira camada ligada à referência literária, mas também para trazer a gente mais perto da questão tupinambá", diz Melvi.

O trabalho da artista teve início com uma pesquisa que começou em 2018, quando Melvi entrou em contato com as "sete instituições europeias que guardam os oito mantos tupinambás que estão na Europa". "Teve todo um processo de construir um retrato de cada um desses artefatos dentro do contexto de conservação. Depois, houve um segundo momento de contemplar os arquivos, e então, o encontro com a [indígena] Glicéria numa tribo tupinambá. Mas eu não sou uma fotógrafa documental", explica. "Então, existe uma forma plástica de abordar esses temas e personagens", diz.

Fotografar o olhar estrangeiro sobre os mantos

A "vingança" da artista brasileira Lívia Melzi se dá numa subversão do espelho do colonizador, que agora entra no foco da câmera da artista. A questão não é mais fotografar plasticamente um objeto ritual, mas o olhar do catalogador europeu sobre o objeto. "Foi um processo artístico longo para mim, de entender de onde eu estava olhando. Sou uma mulher branca, estrangeira na França, nós somos latinas, não somos consideradas brancas aqui; precisa entender esse lugar de brasileira 'branca' que mora na Europa e eu precisava decidir através de qual prisma eu queria olhar essa história. E o único prisma possível era o do 'inimigo'. E estamos na França, um país que teve um papel enorme na construção da iconografia brasileira, da construção da nossa identidade", lembra Melzi.

"Existe uma dose de humor nessa vingança. Sempre tento colocar um elemento que faz os europeus e franceses darem uma risadinha, mas sinto que há um constrangimento", pontua. "Acho que eles riem um pouco constrangidos dessa violência que eles construíram que aqui na Europa, e na França, é tão difícil para eles de administrar, principalmente com todos os migrantes das colônias africanas, com a questão da restituição desses objetos indígenas", considera. 

"Exótico"

Lívia Melzi diz levar em consideração a classificação do "exotismo" e do "exótico", rótulos que costumam acompanhar as obras brasileiras na Europa, mesmo no contexto da arte contemporânea. "Penso muito sobre a resposta estética que dou para isso. Tento não reforçar esse lugar do exótico, do colorido. Por causa do meu passado como oceanógrafa, tenho um olhar científico sobre os objetos. A estética visual dos meus trabalhos é muito frontal, fria. Reforço bastante esse aspecto para sair do estereótipo do exotismo, da cor, do excesso de informação visual ou sonora", diz.

"Banquete canibal"

Em uma das peças de Tupi or not Tupi, a artista brasileira criou uma vídeo-instalação ambientada na Embaixada brasileira de Paris, onde uma mesa é preparada milimetricamente por um chef francês. O prato principal, no entanto, traz um ingrediente, digamos, "exótico" - pés e mãos [reproduções em gesso] do presidente do Palais de Tokyo, centro de arte contemporânea que recebe a artista nesta temporada de artes da capital francesa.

"Foi um processo de criação muito curioso para mim e foi um momento de imposição, no bom sentido, enquanto artista. Não foi simples convidar o presidente do maior centro de arte contemporânea europeu para ser o prato principal de um 'banquete canibal', antropofágico", contemporiza. "Ele entendeu bem o convite, a questão desse lugar de poder que ele tem", diz.