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Ativistas brasileiros reiteram na Europa oposição ao acordo UE-Mercosul

14/11/2022 16h00

Uma delegação de representantes do Movimento Sem Terra (MST), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da ONG ambientalista Amigos da Terra e um advogado defensor dos direitos humanos estão em Paris, neste início de semana, para uma série de encontros com parlamentares franceses e representantes da sociedade civil. Eles vieram reafirmar a oposição de 200 entidades brasileiras ao acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, finalizado em 2019 pelo governo de Jair Bolsonaro. 

"Esse texto foi construído nas costas dos povos. Nós que fomos colonizados há mais de 500 anos, sabemos que esse acordo vai aprofundar muito mais as relações assimétricas de poder, e a violação dos direitos humanos e da natureza", enfatiza Graciela Almeida, agricultora agroecológica em um assentamento do MST em Nova Santa Rita, na região metropolitana de Porto Alegre.

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, disse que a conclusão do tratado, ainda não ratificado, seria uma prioridade nos seis primeiros meses de seu governo, a partir de janeiro. Este e outros sinais de que as negociações devem ser retomadas em breve trazem os ativistas à Europa. 

Em várias ocasiões, o presidente Emmanuel Macron disse que no "estado atual", a França não ratificaria o tratado.

O grupo foi recebido nesta segunda-feira (14) na Assembleia Nacional pelas deputadas Aurélie Trouvé e Marie Pochon, ambas da bancada de esquerda Nupes. "Acelerar este acordo comercial vai aumentar o desmatamento e a violação de direitos humanos que já ocorre no Mercosul", disse à RFI Luana Hanauer, economista e representante da Amigos da Terra. 

Lula e os europeus demonstram interesse em selar um entendimento pelo menos em relação à parte comercial do tratado, o que é considerado insuficiente pelas entidades. "Não houve participação da sociedade civil de ambos os blocos nas negociações e assinar um acordo sem a parte ambiental, sem garantias de que os direitos dos povos serão respeitados, que as empresas transnacionais terão responsabilidade por seus atos, sem ter a parte política e de cooperação junto, não é de interesse da população do Mercosul", destaca a economista.

O acordo de livre comércio entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai (Mercosul) e os 27 estados-membros da União Europeia foi finalizado após 20 anos de negociações, no final de junho de 2019, ainda no primeiro semestre da presidência de Jair Bolsonaro.

Hoje, as entidades alegam que a destruição promovida pelo governo de extrema direita, seja em relação à Amazônia, aos biomas de outras regiões, à demarcação de terras indígenas, à liberação de agrotóxicos proibidos no bloco europeu e à estrutura de fiscalização nessas áreas não tem a menor posssibilidade de ser revertida num intervalo de seis meses, prazo evocado por Lula. "Vamos precisar de muitos anos para restabelecer as instituições de regulamentação e de fiscalização do meio ambiente, assim como os conselhos, que eram espaços de participação da sociedade civil", observa a economista. 

Incorporação de propostas indígenas

O indígena Kretã Kaingang, membro da coordenação nacional da Apib pela região sul do Brasil, se sente aliviado com a eleição de Lula. "O principal papel do movimento indígena foi eleger Lula", salienta. Ele vê como positiva a incorporação de propostas dos indígenas no futuro governo, entre elas a criação de um Ministério Indígena, assim como a participação deles em cargos de coordenação na Funai e na Secretária Especial de Saúde Indígena. Kaingang pondera, no entanto, que não cabe apenas ao presidente eleito assumir a responsabilidade do acordo sozinho.

"A gente sabe que eles querem acelerar a ratificação do acordo por causa da crise na Europa, da guerra da Rússia na Ucrânia, mas para nós é essencial levar em conta o que diz a convenção 169 da OIT", explica o representante da Apib. 

Kaingang se refere à Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais (n° 169), um tratado internacional adotado pela Conferência Internacional do Trabalho da OIT em 1989, que busca superar práticas discriminatórias que afetam os povos indígenas e assegurar que participem da tomada de decisões que impactam suas vidas. Ora, até agora, apenas 23 países adotaram essa convenção, a maioria latino-americanos, inclusive o Brasil.

"A gente precisa rediscutir este acordo, senão nossas florestas e nossas terras ainda vão ficar abertas à mineração e ao desmatamento. É difícil resolver isso num prazo de seis meses, e a União Europeia, não só o governo brasileiro, têm que se preocupar com isso", insiste o coordenador da Apib. 

Agrotóxicos

Outro aspecto levantado pelos defensores brasileiros é a questão dos agrotóxicos. Graciela Almeida, agricultora agroecológica em um assentamento do MST, busca nesta visita sensibilizar a sociedade civil europeia sobre o modelo de agronegócio instalado no Brasil, que, segundo ela, aprofundou as desigualdades e a violência. "Nossos territórios se transformaram num alvo da guerra química. Nossas populações foram atingidas diretamente pela pulverização aérea de agrotóxicos que são proibidos na União Europeia, mas continuam a ser usados no Brasil e a poluir nossas águas, nossas cabeças, nossa alimentação", relata.

Antes de chegar à França, os ativistas brasileiros tiveram encontros com autoridades na Alemanha, Holanda e Bélgica. Depois da França, ainda irão à Áustria. Na sede da Comissão Europeia, em Bruxelas, pediram ao Executivo europeu que as discussões sobre os termos do tratado sejam abertas à participação de representantes da sociedade civil, quando as negociações forem retomadas. Em conversas com membros do Parlamento Europeu, "nós sentimos uma boa receptividade dos deputados e o compromisso de levantarem a questão dos impactos do acordo para as populações dos dois blocos", disse Luana Hanauer. 

Embora o Parlamento Europeu acredite que tenha fortalecido sua legislação recentemente, com o endurecimento das regras sobre o chamado "desmatamento importado", os ativistas brasileiros ressaltam que o acordo UE-Mercosul só faz referências a obrigações não vinculantes para governos e empresas, contidas no Acordo de Paris sobre o Clima e na Convenção da Biodiversidade da ONU. "Isso dá flexibilidade às empresas transnacionais, que vão estar usufruindo dos bens comuns, que eles veem como matéria-prima, deixando o prejuízo para os povos e causando impactos irreparáveis sem nenhuma responsabilidade", ressalta a ativista da Amigos da Terra. 

Texto só em inglês

O advogado Efendy Emiliano Maldonado Bravo, que defendeu Graciela e outros assentados vítimas da pulverização de agrotóxicos em suas plantações, tem grandes expectativas em relação à posição francesa. "Nos surpreende que apenas com um indicativo de mudança no governo brasileiro, o mesmo acordo construído no governo Bolsonaro, um governo autoritário que não tem a legitimidade para representar os interesses da população, passe a ser válido para discussão", protesta o advogado. O defensor ressalta que além de ter sido elaborado sem a participação de representantes da sociedade civil, o texto finalizado em 2019 sequer foi traduzido para o português. A única versão disponível para consultas, destacam os ativistas, está incompleta e escrita em inglês. 

"Todo esse processo viola a Convenção 169 da OIT e também a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, porque reforça as assimetrias entre o norte e o sul global, e tem uma lógica comercial neocolonial", critica Maldonado Bravo. Um contundente exemplo dessa assimetria diz respeito aos agrotóxicos, avalia o advogado, já que "produtos proibidos na União Europeia continuam sendo vendidos para países do sul". 

O defensor acredita que os "seis meses" evocados por Lula são apenas uma indicação de que ele espera reabrir as discussões no primeiro semestre de 2023. "Mas é preciso ampliar a participação da sociedade e incluir as principais vítimas desse modelo destruidor que o agronegócio tem engendrado nas nossas terras e também que as corporações da mineração tem imposto nesses territórios", conclui o advogado, fazendo alusão às piores tragédias socioambientais que o Brasil já viveu, em Brumadinho e Mariana.