Lei sobre consentimento sexual na Espanha provoca controvérsias com solturas e reduções de pena
Na Espanha, a Lei Orgânica de Garantia Integral da Liberdade Sexual, aprovada em agosto deste ano e conhecida como Lei "Só Sim É Sim", vem gerando polêmica. Isso porque a aplicação da norma, adotada para garantir que a interação sexual sem o consentimento de todas as partes seja punida como violação, tem ocasionado a redução de pena de pessoas já presas e, inclusive, a soltura de outras.
Ana Beatriz Farias, correspondente da RFI na Espanha
As novidades relacionadas à aplicação da Lei "Só Sim é Sim" têm estado entre os assuntos mais comentados na imprensa e nas redes sociais espanholas nos últimos dias. Afinal, os fatos, que parecem apontar para um afrouxamento das punições, são indesejados pelos que promovem a norma como garantidora de direitos, já que podem ser encarados como desfavoráveis à vítima.
Entre as transformações provocadas pela Lei de Garantia Integral da Liberdade Sexual, uma das mais relevantes gira em torno do fato de que o texto legal deixa de considerar a existência do delito de abuso e, a partir daí, passa a utilizar o mesmo termo tanto para o que antes era visto como abuso, quanto para o que já era designado como violação.
Desta forma, toda interação sexual não consentida começa a ser tratada como violação, o que abre o leque de ações que podem ser punidas sob essa definição. Acontece que, na nova norma, as penas previstas para a chamada violação foram alteradas, de forma a abranger desde os delitos mais leves aos mais graves. Com isso, a pena mínima sofreu redução, de 6 para 4 anos, e, ao mesmo tempo, foram adicionados agravantes que podem aumentar as punições cabíveis.
Nesse cenário de mudanças nas possibilidades de aplicação da lei, pessoas que foram anteriormente condenadas por crimes sexuais têm direito a solicitar revisão de pena e, se o juiz considerar válido, o indivíduo em questão pode passar menos tempo na cadeia ou, inclusive, ser solto, se no momento do ajuste for compreendido que a pena, uma vez atualizada, já teria sido cumprida.
Em um dos casos que já passaram pela redução de pena, figura como condenado o padrasto de uma adolescente de 14 anos. Já nas Ilhas Baleares, por exemplo, dois homens condenados por agressão sexual sem penetração foram soltos. Por outro lado, há tribunais em que, apesar da aplicação de diversas revisões, não constam modificações de pena.
Vale ressaltar que, de acordo com especialistas, falta ao texto legal uma disposição transitória que se costuma utilizar para evitar efeitos indesejados na revisão de sentenças.
Cenário político
Em agosto, quando foi aprovada de forma definitiva, a lei "Só Sim É Sim" gerou repercussão internacional. Considerada por muitos como vanguardista, por trazer para o centro da discussão sobre a violência sexual a necessidade do consentimento expresso, a norma, uma vez publicada, marcou a vitória de um dos principais projetos do Ministério de Igualdade da Espanha.
Desse modo, assim como esteve no centro das comemorações relacionadas à atualização da legislação, a titular da pasta, Irene Montero (Podemos), é uma das protagonistas desse novo momento que põe em xeque os avanços garantidos pelo texto legal.
Para a ministra, o problema está na interpretação dos juízes. Montero insinuou que o que falta aos magistrados é perspectiva de gênero.
"A ONU, que já estudou amplamente o machismo nos sistemas de justiça, e que, de fato, reconhece claramente que os estereótipos, o machismo, podem comprometer a imparcialidade dos sistemas de justiça. E que esse machismo, esses estereótipos, podem fazer com que existam juízes ou juízas que apliquem de forma errônea a lei", comentou a ministra em entrevista que, posteriormente, publicou nas redes sociais.
Já o outro partido que forma o governo de coalizão espanhol, o PSOE, reagiu, num primeiro momento, em outro tom, gerando tensões internas. A vice-secretária geral dos Socialistas e Ministra da Fazenda, María Jesús Montero, sinalizou para uma necessidade de estudar uma possível reforma na lei, já que o efeito causado vem sendo o oposto do esperado. O Ministério da Igualdade refutou dizendo que "na lei não se toca".
Alberto Nuñéz Feijóo, presidente do Partido Popular e um dos principais opositores ao atual governo espanhol, liderado pelo primeiro-ministro Pedro Sánchez (PSOE), declarou que "Sánchez deve assumir a responsabilidade pela desproteção que a Lei "Só Sim É Sim" causa às mulheres", afirmando ainda que o governo deve retificar seu erro e deixar de atacar os juízes.
A Associação Profissional da Magistratura, que reúne juristas espanhóis, também se manifestou. O órgão pediu a exoneração da titular do Ministério de Igualdade, em um comunicado no qual acusou Irene Montero de desqualificar de forma generalizada os profissionais da justiça, ao invés de assumir que a norma dá lugar a interpretações que possam ser resolvidas, por imperativo dos princípios penais básicos, a favor do réu.
Possibilidades de mudança
Os tribunais estão atuando de forma distinta. Enquanto se fala que na região de La Rioja dezenas de casos já foram revisados sem resultar na alteração de penas, em Madri a situação parece diferente.
Pelo que foi possível observar nos últimos dias, a possibilidade de que os juízes sigam a tendência de abrandar as penalizações de condenados por delitos sexuais poderia fazer com que se enfraquecesse a ideia de que a lei vem para garantir mais direito e mais segurança às mulheres.
Como forma de frear essa avalanche sem partir para uma tentativa direta de reformar a norma, o Tribunal Supremo Espanhol deve revisar os primeiros recursos feitos por parte das defesas dos agressores. A ideia é, apesar da margem deixada pela lei para interpretação de cada juiz, unificar um critério a ser aplicado pelos magistrados no momento do juízo.
Em pronunciamento público, o primeiro-ministro Pedro Sánchez defendeu a lei como uma conquista e disse que a posição do poder executivo e do poder legislativo é a de proteger as mulheres. Além disso, acrescentou que "corresponde aos tribunais e ao ministério público unificar a doutrina e criar jurisprudência". "Temos que deixar também o poder judiciário trabalhar", afirmou.
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