Sem-teto: "A medida mais eficiente é garantir moradia, com acompanhamento", alerta Pastoral

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Supremo Tribunal Federal, de proibir as remoções compulsórias de pessoas em situação de rua reacendeu o debate sobre a situação de milhares de brasileiros necessitados de acompanhamento. A Pastoral do Povo da Rua diz que assegurar moradia é o primeiro passo para restaurar dignidade e trabalhar a reinserção na sociedade dessas pessoas em situação de vulnerabilidade.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Desempregados, recebendo apenas o benefício do Bolsa Família, Cíntia e Romário decidiram sair do interior de Goiás, onde pagavam um aluguel de R$ 500,00, para tentar a vida em Brasília, atrás de maior oferta de emprego. Mas com baixa escolaridade e sem experiência, o casal acabou conseguindo apenas bicos. Como na capital os custos de moradia são muito mais altos, o jeito foi armar uma barraca de lona, montar um banheiro improvisado e viver, com os dois filhos pequenos, próximos de uma rotatória, em uma área movimentada da cidade.

"Não compensa ficar lá onde a gente morava antes. Não tem emprego. Até de faxineira é difícil achar. Aqui é melhor, a gente ganha comida, roupa, as pessoas param para ajudar. Só que aqui o aluguel é R$ 1.000, R$ 800, o que para a gente não dá. O que eu mais queria era uma casa por aqui", afirmou Cíntia Souza, de 27 anos. No ano passado, ela voltou a estudar e cursa hoje a terceira série do ensino fundamental.

"A gente pega água ali no mercado para banhar, para beber. Faz comida também, no fogo de lenha. A gente toma banho ali atrás mesmo. O mais difícil aqui é o frio. Faz frio de madrugada ou de manhã bem cedinho. E tem dia que o calor é muito forte, não tem árvore", relatou Romário Santos que, além da casa e do emprego, sonha em fazer um implante para repor quase todos os dentes da frente que perdeu, pois acredita que isso o atrapalha na busca por trabalho.

Eles contaram que o filho mais velho, de 6 anos, está na escola. E vão tentar vaga para o caçula, de 2 anos, em uma creche.

O governo federal tem 120 dias para apresentar uma política nacional voltada a pessoas como Cíntia e Romário, que vivem em situação de rua. Além disso, o poder Executivo terá de fazer um levantamento com o perfil desses brasileiros, bem como de suas principais necessidades. Remoção compulsória, barreiras em locais públicos, tudo isso fica proibido pela decisão de Alexandre de Moraes, que será analisada em agosto pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.

Para a coordenadora da Pastoral do Povo da Rua, irmã Ivone Maria Perassa, a decisão de Moraes chama a sociedade para um debate importante, mas que sempre foi tratado com medidas paliativas por municípios e estados, mais para remover dos olhos da cidade seus moradores sem teto, do que com vistas a reintegrar essa população ao convívio dos demais.

"A decisão do ministro do STF ajuda porque dá força para prosseguirmos nessa luta, mas a discussão que de fato precisa ser ampliada é de um programa de moradia, respeitando toda a complexidade e diversidade de situações. A moradia com acompanhamento é o primeiro passo para então se investir na geração de renda, na reconstrução de relações sociais. Isso é muito mais eficiente e barato que fazendas terapêuticas, por exemplo, de onde a maioria sai e volta às ruas", afirmou à RFI Ivone Perassa.

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"Já existem no Brasil experiências assim, inclusive através da Pastoral, de que saindo da marquise para a moradia e, a partir da moradia, por meio de ações de reinserção, emprego, volta-se à vida normal. Isso contribuiria muito para diminuir esse sufoco, hoje, que as cidades vivem, mas isso não é ainda preocupação dos municípios. É uma luta a ser feita."

Programa habitacional não basta

Entidades como a Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto têm alertado para o fato de que não se trata apenas de assegurar que pessoas em situação de rua sejam incluídas em programas habitacionais já existentes, onde muitas vezes as moradias são erguidas em locais distantes do mercado de trabalho e de escolas. Essa ações não contam com o monitoramento posterior das famílias nem atendem outras necessidades desse público, e muitos ainda exigem contrapartidas financeiras que comprometem boa parte da renda dos beneficiados, mesmo quando o imóvel é subsidiado pelo poder público.

"Eu queria pelo menos ter curso de alguma coisa. Eu comecei a fazer um curso de cuidador de idoso. Como eu não escuto de um lado nem estava enxergando direito, não adiantou. Eu tenho problema, tenho de fazer uma minicirurgia no olho, nos dois. E ver se eu consigo um aparelho para ouvir. Onde eu vou conseguir aparelho, se já tem anos que eu entrei na fila para conseguir uma consulta de neurologia?", pergunta uma mulher de 40 anos, que falou com a RFI, mas preferiu não se identificar.

Ela montou uma barraca com plástico e madeira perto de uma avenida e já passou sufoco quando a filha, de 3 anos, quase foi atropelada. "Estou com depressão e ansiedade. Aí o médico me passou um remédio, mas não falou que dava sono. Então eu tomei e acordei com alguém gritando 'sua filha vai morrer, ela está lá na pista'. A sorte é que não tinha carro. Aí não consegui mais tomar."

A moradora em situação de rua recebe auxílio do governo e doação de alimentos de quem passa pelo local onde montou sua barraca. Ela disse que já viveu momentos tensos por ocupar espaços públicos e áreas demarcadas irregularmente.

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"Quando eles vêm derrubar, se a gente não tiver com as coisas, tudo num canto certinho, eles passam o trator. Balde de água eles levam, colchão eles levam. Por exemplo, botijão, fogão, não é nem bom você ter aqui não. Na hora de vir derrubar, como você vai levar as coisas? Na cabeça? Já perdi muita coisa. Documento mesmo, se você não ficar esperto, guardar num canto, separar e correr, aí já vem conselho tutelar, já vem a polícia. E olha que melhorou. Hoje, eles chegam, falam para pegar as coisas logo e sair. Antes já chegavam derrubando."

Realidades diferentes exigem soluções adaptadas

Dados preliminares do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadaapontam para mais de 280 mil pessoas vivendo nas ruas do Brasil em 2022, mas muitos municípios não têm esse levantamento em dia. A França, por exemplo, que tem uma população três vezes menor do que o Brasil, tinha 330 mil pessoas sem teto no início de 2023. 

A pandemia agravou essa situação de vulnerabilidade no Brasil. Há famílias que não conseguiram mais bancar o aluguel e acabaram nas calçadas das cidades, mas há também uma parcela dessa população que tem problemas com álcool e droga, exigindo um programa que vise restaurar a dignidade humana para além do bem material.

"Não é Minha Casa, Minha Vida não. É preciso algo específico. Muita gente diz que isso não dá certo, que os que moram na rua acabam voltando. As pessoas se baseiam em um ou outro caso para dizer que a pessoa não vai se adaptar. É claro que há realidades diferentes nas ruas, e isso precisa ser levado em conta. É preciso também criar e manter residências inclusivas para pessoas que não têm condições de morar sozinhas. Por isso que defendemos a inclusão na moradia, não como merecimento, mas como um direito, olhando toda essa diversificação", afirmou a coordenadora da Pastoral do Povo da Rua.

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