"Nunca atingimos números de violência contra crianças tão elevados", diz representante da Unicef sobre conflitos

Várias ONGs alertam, nesta segunda-feira (20), dia Internacional dos Direitos da Criança, sobre o aumento da violência contra menores de idade em conflitos no mundo. Nas zonas de guerra, onde vivem mais de 400 milhões de crianças, o direito internacional tenta, com dificuldade, protegê-las.

Até 7 de novembro, um mês após o início do conflito entre Israel e o Hamas, pelo menos 4.237 crianças tinham morrido na Faixa de Gaza, segundo números do Ministério da Saúde do enclave, sob o governo do movimento islâmico palestino.

Um número assustador que equivale ao dobro do total de crianças palestinas mortas na Cisjordânia e em Gaza juntas desde 1967, segundo a ONG Defense for Children International. "Gaza está se tornando um cemitério de crianças", lamentou, em 6 de novembro, o secretário-geral da ONU, António Guterres, pedindo um cessar-fogo "imediato".

Para várias ONGs, este triste registo evidencia as violações cometidas contra menores em tempos de guerra, que continuam a aumentar.

Em 2019, mais de uma em cada seis crianças vivia em uma zona de conflito. Em 2022, a ONU contabilizou 27.180 violações graves cometidas contra menores de idade, incluindo 8.630 assassinatos e mutilações, um nível nunca alcançado em quase 20 anos de censos.

"Estes números devem ser um símbolo da ilegalidade destes ataques", afirma Bill van Esveld, vice-diretor da divisão de direitos das crianças da Human Rights Watch.

Cada vez mais vítimas

Por trás dos números, existem horrores indescritíveis. As vítimas da guerra do Tigré na Etiópia, os mortos nas explosões de minas terrestres no Afeganistão, o recrutamento de menores de idade para grupos armados na República Democrática do Congo, crianças executadas no âmbito da "guerra às drogas" nas Filipinas. Os menores são afetados pela violência e, muitas vezes, são alvo dela.

Para melhor identificá-los, a ONU enumera seis tipos de violência específicos contra este segmento da população: homicídio, recrutamento por grupos armados, violência sexual, ataques contra escolas ou hospitais, raptos e recusa de autorização de acesso de ajuda humanitária a crianças.

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No caso dos homicídios contra crianças, o número duplicou em relação a 2005. "Nunca atingimos números de violência tão elevados", alerta Lucile Grosjean, diretora de advocacia da Unicef ??França. "O que está acontecendo em Gaza mostra que o trabalho está longe de terminar e que estamos retrocedendo na aplicação e no respeito do direito internacional. Estamos cruzando uma linha vermelha em termos de horror", insiste.

Bombas parecidas com brinquedos

Os deslocamentos massivos de populações também são uma agressão porque frequentemente interrompem o contato entre as crianças e suas famílias. Segundo a Unicef, no final de 2022, um número recorde de 43,3 milhões de crianças viviam em situações de deslocamento forçado.

"Por isso, ficam ainda mais vulneráveis ??e acabam carregando o pesado fardo de um conflito que não é o deles", resume Alyona Synenko, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Sozinhos, elas estão expostas a todo tipo de abuso. "Temos crianças soldados, infraestruturas militares instaladas em escolas, violação do princípio da proporcionalidade", enumera.

"Há também muitas armas ilegais que foram em grande parte proibidas, mas que ainda são utilizadas, tais como munições de fragmentação ou minas antipessoais", acrescenta Bill van Esveld. Em 2023, de acordo com o relatório anual da Landmine Monitor, a Rússia, Mianmar e a Ucrânia usaram minas terrestres antipessoais, apesar de terem sido proibidas por um tratado de 1997.

Se estas armas não explodem em combate, são abandonadas. As crianças muitas vezes vivem, brincam e vão à escola em áreas repletas de minas, que prolongam o conflito muito depois de ter terminado. "Essas armas são, por definição, indiscriminadas. Não conseguem distinguir entre alvos civis e militares e é praticamente certo que matarão pessoas inocentes, mesmo menores", explica o membro da Human Rights Watch.

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O mesmo problema acontece com as munições de fragmentação, também proibidas em todo o mundo, que dispersam pequenas cargas explosivas. "Elas geralmente são coloridas, muito pequenas e tristemente conhecidas por serem confundidas com brinquedos pelas crianças", explica Bill van Esveld. Em 2022, estas bombas causaram pelo menos 185 vítimas, 71% crianças, no Azerbaijão, Iraque, Laos, Líbano, Síria, Ucrânia e Iémen.

A "Lista da Vergonha"

Para proteger os menores dos conflitos armados, a ONU publica anualmente um relatório que identifica os países que cometeram violações dos direitos das crianças. "Chamamos 'lista da vergonha'", diz Bill van Esveld. Baseando-se no princípio "name and shame" (literalmente "nomear e cobrir de vergonha"), o documento fornece informações sobre cada violação e incentiva os países mencionados a reduzi-las.

No último relatório, publicado em junho de 2023, a Ucrânia - palco de confrontos entre Kiev e Moscou - teve o maior número de assassinatos de crianças (477), totalizando 2.334 violações graves. "A partir deste inventário, há muito trabalho que está sendo feito com as partes em conflito para desenvolver planos de ação", afirma Lucile Grosjean. "Foi muito útil na República Democrática do Congo, por exemplo, onde o recrutamento de crianças para as forças armadas foi reduzido após a assinatura de um plano em 2012."

Se a credibilidade desta lista aumenta de fato a pressão internacional sobre os países onde as crianças estão em perigo, sua objetividade é contestada. "Na Human Rights Watch, criticamos o secretário-geral por permitir que esta lista seja politizada, porque certos países nunca são listados devido a pressões políticas", queixa-se Bill van Esveld, mencionando a Arábia Saudita e denunciando a "ginástica realizada" para fazer referência ao Estado de Israel sem nunca realmente listá-lo. "Há geralmente controvérsia sobre quem irá aparecer nesta lista negra porque nenhum país ou grupo armado quer aparecer nela", reconhece Lucile Grosjean.

Aplicar leis existentes

Grande parte do trabalho das ONGs consiste em tentar aplicar o direito internacional para proteger os menores. Em teoria, as crianças beneficiam de uma proteção geral, segundo o princípio de que a população civil não deve ser alvo de ataques, além de disposições específicas, que proíbem, entre outras coisas, qualquer forma de atentado ao pudor, recrutamento para forças armadas e também detenção.

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Contudo, na prática, este direito internacional nem sempre é respeitado. "Há vários exemplos em que as leis existentes são muito claras e as violações são igualmente claras, como os ataques a hospitais na Faixa de Gaza ou o uso de munições de fragmentação pela Rússia para atacar a estação de Kramatorsk lotada", alerta Bill van Esveld, que também pressiona para que as leis sejam mais protetoras, proibindo sistemas de armas autônomos e fósforo branco. "As leis em vigor permitem diferenciar entre humanidade e desumanidade, é urgente reafirmá-las", frisa Lucile Grosjean.

O único obstáculo é o tempo necessário para a Justiça, que é muito longo ou inexistente. Quando os conflitos terminam, muitas vezes é dada prioridade à reconstrução, em detrimento dos tribunais. "Não há judicialização suficiente", lamenta o diretor de advocacia da Unicef ??França, que aponta para sistemas judiciais nacionais por vezes deficientes e para um Tribunal Penal Internacional que só trata dos crimes mais graves.

"Se um soldado comete violações contra crianças, deve ser processado pelo próprio exército. Em alguns casos isso nunca acontece", diz Bill van Esveld.

Algumas ONGs, como a Human Rights Watch, defendem há vários anos que os tribunais nacionais tenham "jurisdição universal", o que permitiria que os alegados autores destas violações fossem processados, independentemente da nacionalidade e do local onde estes crimes foram cometidos.

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