ONU: Acesso desigual à água, acentuado por mudanças do clima, ameaça a paz no mundo

Neste 22 de março, Dia Mundial da Água, a ONU ressalta a urgência de a humanidade gerenciar este recurso essencial de forma sustentável e equitativa - 2,2 mil milhões de pessoas ainda não têm acesso à água potável. Para piorar a situação, as mudanças climáticas perturbam o ciclo da água na Terra, o que tende a gerar novos conflitos ou acentuar os existentes.

Stefanie Schüler, da RFI

O Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos de 2024, publicado nesta sexta-feira pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura), afirma que a procura por água aumenta 1% por ano no mundo. Esta alta se deve à industrialização dos países, ao estabelecimento de cada vez mais populações nas cidades e aos hábitos alimentares.

O crescimento populacional, por outro lado, tem pouco impacto na procura por água. As populações que crescem mais rapidamente - como as africanas - são as com o menor consumo de água per capita. Das 2,2 bilhões de pessoas no mundo que não têm acesso à água potável, 80% vivem em áreas rurais.

"O objetivo de garantir o acesso à água potável para todos até 2030 está longe de ser alcançado. Há receios de que as desigualdades continuem a aumentar nesta área", reconhece a ONU.

Enquanto isso, as mudanças climáticas perturbam o ciclo da água no planeta. Embora algumas regiões do mundo sofram inundações devastadoras, como as que atingiram o Paquistão em agosto de 2022, outras registram secas prolongadas ou enfrentam a salinização dos seus abastecimentos de água doce, devido à subida do nível do mar, como em Bangladesh.

Em 2022, quase metade da população mundial enfrentou grave escassez de água durante pelo menos parte do ano, com um quarto registrando níveis "extremos" de estresse hídrico. Hoje, 10% das populações deslocadas em todo o mundo foram forçadas a abandonar as suas casas devido à falta de água.

Água: direito humano e fator de prosperidade

No entanto, a água é um direito humano, intrínseco à vida, e um fator essencial de prosperidade, sublinha Richard Connor, editor-chefe do relatório de 2024 sobre recursos hídricos, publicado pela Unesco. "Sem acesso à água potável, as pessoas ficam expostas a todo tipo de doenças. Estas doenças as impedem de ir à escola, de trabalhar, de serem produtivas", explica o biogeoquímico canadense.

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"Sem água, não temos eletricidade. Sem água, não há produção agrícola, portanto, não há segurança alimentar. Sem água não há indústria. Entre 60 e 65% de todos os empregos no planeta, e até 80% dos empregos nos países em desenvolvimento, dependem diretamente da água", explica. "Portanto, a água e a prosperidade estão intimamente ligadas."

À medida que a água doce se torna mais escassa, "aumenta o risco de conflitos locais ou regionais", alerta Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco. Embora os autores do relatório ainda não tenham conseguido provar que o acesso à água doce foi o gatilho para um conflito entre dois Estados, há cada vez mais exemplos de confrontos entre diferentes usuários do recurso hídrico em um mesmo país.

Os "cartéis da água" em Nairóbi

Em Nairobi, por exemplo, uma batalha está em curso pelo acesso ao "ouro azul". A urbanização na capital do Quênia se acelera, mas o recurso não está disponível para atender às necessidades da população.

Nos bairros informais de Nairóbi, onde os residentes não têm acesso a água corrente, ela passou a ser traficada por vendedores que se opõem e desafiam o Estado, relata o correspondente da RFI no país, Albane Thirouard.

Em Mathare, uma comunidade de Nairóbi, há diversos pontos de venda de água, já que os moradores não têm o recurso encanado. "Onde eu moro não há água e quem traz, vende muito caro. O galão de 20 litros custa 20 centavos", reclama Florence, dona de casa e mãe de três filhos.

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Não distante dali, Samuel está sem água no ponto de venda há três semanas. Ele acusa o que descreve como "cartéis" de terem fechado a torneira.

Tobias Omufwoko, CEO da Wash Alliance, uma organização do setor, considera esta hipótese plausível. "Algumas pessoas nestes bairros informais, muitas vezes em conluio com agentes das companhias de água, fecham uma linha para criar escassez e depois vão vender os seus galões", relata. "São chamados cartéis porque estes indivíduos trabalham ilegalmente, em colaboração com operadores formais do setor. Querem vencer o sistema, mas empobrecem os pobres ao vender a eles água mais cara", continua.

O governo queniano avalia que o fornecimento não cobrado gera prejuízos de mais de € 70 milhões por ano, em parte devido a esta situação. Para tentar controlar as fraudes, as autoridades mobilizaram uma força policial hídrica no início de 2023, com 400 homens em todo o país, indica Samwel Alima, secretário de Estado das Águas.

Em Mathare, entretanto, muitos permanecem céticos e apontam a corrupção e a conivência dos vendedores legais e ilegais, o mau estado da rede e, sobretudo, a falta de água como barreiras ao pleno atendimento dos habitantes de Nairóbi.

Na Argentina, concorrência energia e agricultura

Um setor com uso particularmente intensivo de água é o da energia. Na província de Rio Negro, na Argentina, a exploração do gás de xisto ameaça a produção agrícola.

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Graças à jazida de Vaca Muerta, as autoridades esperam não só alcançar a autossuficiência energética, como fazer da Argentina um país exportador de gás liquefeito, apresentado como "o combustível da transição energética".

Mas para extrair este hidrocarboneto presos nas formações rochosas, as empresas recorrem à fraturação hidráulica. O método consiste em criar fissuras subterrâneas através da injeção, em alta tensão, de produtos químicos, areia e uma quantidade fenomenal de água doce.

"O fraturamento hidráulico precisa de água de qualidade, sem sal, como a que corre em nossos rios", explica Agustin Gonzalez, professor de agronomia da Universidade de Neuquén. À medida que a exploração do xisto está em expansão, as quantidades de água utilizadas aumentam exponencialmente.

"Segundo dados oficiais, em três anos passamos de uma média de 5 mil metros cúbicos de água por mês para 100 mil metros cúbicos em agosto passado. A questão é, portanto, quanto tempo os nossos rios e aquíferos serão capazes de resistir", alega Gonzales.

Um metro cúbico equivale a uma tonelada de água. A água necessária para o fraturamento hidráulico é bombeada diretamente do Rio Neuquèn e do Rio Negro. Entretanto, esta mesma água tem sido utilizada para a agricultura há um século.

Nesta região semidesértica, são produzidas maçãs e peras, consumidas na Argentina, mas também na Europa durante o inverno. 

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"As mudanças climáticas já estão nos afetando. Sofremos dez anos de seca. A situação é muito crítica. Apesar de tudo isso, as nossas autoridades apostam numa estratégia de curto prazo e prejudicial ao ambiente, e não numa atividade cada vez mais essencial: a produção de alimentos", aponta agrônomo argentino.

Acesso à água no foco dos investimentos em adaptação

Segundo a ONU, 70% da água doce do planeta é utilizada para a agricultura, enquanto a produção de energia representa 15% das retiradas de água no mundo. A exploração e transformação de combustíveis fósseis são particularmente intensivas no uso de água, enquanto as energias solar e eólica utilizam apenas uma quantidade insignificante do recurso.

Consequentemente, os cientistas sublinham a urgência de investimentos maciços nestas energias renováveis, particularmente em regiões do mundo que enfrentam cada vez mais períodos intensos de estresse hídrico.

"Os investimentos futuros na transição energética e na adaptação às alterações climáticas devem colocar sistematicamente o acesso à água no centro do pensamento", acredita Richard Connor. O editor-chefe do relatório da Unesco insiste no fato de existirem novas tecnologias para tornar mais eficiente a gestão da água, tanto na agricultura como na indústria ou mesmo para usos domésticos.

A preservação do recurso é mais essencial do que nunca, já que a sua insuficiência pode ameaçar a paz, advertem os especialistas da ONU. O relatório de 2024 sobre o desenvolvimento dos recursos hídricos enfatiza a urgência de reforçar a cooperação regional e global nesta área.

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É preciso uma verdadeira "governança da água", alegam os relatores, com prioridade às comunidades mais desfavorecidas, como os povos indígenas, as mulheres e os pequenos agricultores, assim como uma verdadeira "diplomacia da água" para prevenir conflitos entre comunidades que compartilham recursos hídricos.

Segundo o relatório, a África é o continente mais exposto às tensões relacionadas à água. "Dezenove dos 22 Estados estudados sofrem com a escassez de água, enquanto dois terços dos recursos de água doce atravessam fronteiras", sublinham os pesquisadores. Contudo, "dos 106 aquíferos transfronteiriços mapeados na África, apenas sete são objeto de cooperação formalizada entre países".

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