Franceses de confissão muçulmana buscam emigração para se libertar do racismo

A França tem registrado um fenômeno novo: o número de franceses muçulmanos que se mudam para outro país por causa do racismo antiárabe está em alta. Um livro publicado neste mês, baseado em uma pesquisa universitária sobre a diáspora de franceses de confissão muçulmana, traz dezenas de depoimentos de descendentes de árabes bem inseridos socialmente que desistem de viver no país por não aguentar mais as discriminações que sofrem no cotidiano. 

O livro "La France, tu l'aimes mais tu la quittes", da editora Seuil, em tradução livre "A França, você a ama mas você a abandona", é o resultado de uma pesquisa feita pelos professores Olivier Esteves, que leciona civilização de países de língua inglesa na Universidade de Lille, Alice Picard, doutora em ciência política, especialista em governança do Islã no Laboratório Arènes, e Julien Talpin, pesquisador em ciência política na Universidade de Lille. 

Os entrevistados que exprimem seu desalento são muçulmanos que nasceram na França ou chegaram pequenos, frequentaram a escola francesa, estudaram nas universidades, se tornaram professores, médicos, funcionários públicos, advogados e veem a França como seu único país, mas não suportam mais serem reduzidos à identidade árabe ou à confissão religiosa. Por mais que tenham se esforçado para se integrar como qualquer outro cidadão à sociedade francesa, eles continuam sendo vítimas de racismo no mercado de trabalho, na mídia e no discurso político.

Os entrevistados falam de uma atmosfera "sufocante", "cada vez mais insuportável". A maioria diz conhecer algum parente ou amigo que fez o caminho da emigração. Não há números precisos sobre esse movimento, mas ele é confirmado pela editora do site de notícias especializado Saphirnews e um imã, que além de predicador muçulmano, é professor e estudioso do assunto na Universidade Sorbonne-Nouvelle. 

Os neoemigrantes desiludidos com a França não procuram necessariamente se instalar num país muçulmano. A mudança não é motivada por uma vontade de viver em uma comunidade que cultiva comportamentos ou valores idênticos. Eles apenas almejam viver num país onde tenham as mesmas oportunidades que qualquer outro cidadão com as mesmas competências e não ficarem marcados pela origem árabe. São imigrantes da segunda ou terceira gerações que se sentem franceses, mas permanecem sujeitos à exclusão. Eles querem se libertar desse ambiente que se deteriorou na França nos últimos 20 anos.

Vinte anos de atentados e desinformação

Para os franceses muçulmanos, o ataque do movimento extremista islâmico Hamas contra Israel, em outubro passado, contribuiu para ampliar a imagem negativa dessa minoria. Pesquisas mostram, no entanto, que apenas 25% dos franceses muçulmanos aprovaram o ataque do Hamas.

A exclusão e o racismo contra imigrantes, sejam árabes, negros ou asiáticos, vem de muito mais tempo na França. O país sempre teve uma certa elite xenófoba, que rejeita estrangeiros. Tem um passado colonial e é considerado historicamente racista. 

Para os árabes, sejam laicos ou muçulmanos, o ambiente piorou desde os atentados de 2001 nos Estados Unidos. A partir dos ataques da Al Qaeda, o fundamentalismo islâmico se infiltrou nas periferias francesas. Houve a onda de atentados extremistas a partir de 2012, quando um francês de origem argelina atacou uma escola judaica em Toulouse, matou um professor, as duas filhas dele e outra criança, filha do diretor da escola. A partir desse momento, a extrema direita, que estava isolada do cenário político, ressuscitou com muita força, e os imigrantes muçulmanos se tornaram bodes expiatórios de todos os problemas do país.

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Teoria conspiratória

Em 2012, o escritor francês Renaud Camus apresentou no livro "A grande substituição" uma teoria conspiratória que diz que a população branca e cristã da Europa, a da França em primeiro lugar, está sendo substituída por uma horda de imigrantes negros e árabes, provenientes de países do norte da África e da África subsariana.

Rapidamente, Camus se tornou o guru da extrema direita, uma referência para extremistas identitários e supremacistas brancos em todo o mundo. Essa ideologia, sem qualquer fundamento racional, inspirou terroristas supremacistas brancos a cometer atentados contra mesquitas e locais frequentados por imigrantes em vários países.

Os políticos de extrema direita franceses adotaram a ideologia de Camus em seus discursos e passaram a fazer dos imigrantes árabes e negros bodes expiatórios de todos os males da França. A tese de que os muçulmanos estariam "tomando conta de tudo" é pura desinformação e alimentou o racismo. 

Sete milhões de estrangeiros

O censo de 2022 mostrou que a França tem 7 milhões de imigrantes, que representam 10,3% da população total de 67,8 milhões de habitantes. O país não produz estatísticas por religião, mas teria, segundo projeções, entre 5,4 milhões e 8 milhões de muçulmanos. 

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Os dois maiores partidos franceses de extrema direita, Reunião Nacional, de Marine Le Pen, e principalmente o Reconquista, fundado pelo jornalista Éric Zemmour, apontam os estrangeiros e o custo dos imigrantes no orçamento público como responsáveis pelos problemas do país.

O tema da violência urbana domina há 15 anos as campanhas políticas, apesar de dados concretos relativizarem a relação entre imigração e delinquência. Os dados oficiais mais recentes, de dezembro de 2023, mostram que 23% dos detentos franceses são estrangeiros.

Vários estudos apontam que as "minorias visíveis da imigração", isto é, negros e árabes, são mais submetidos a controles da polícia e presos. Quando são apresentados a um tribunal, com o mesmo perfil e o mesmo crime, os estrangeiros têm maior probabilidade de serem condenados a penas mais longas. Por isso, representam quase um quarto dos detentos.

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