Sociedade brasileira se mobiliza após aprovação de PL que restringe aborto legal

Por dia, em média no Brasil, 39 meninas de dez a 14 anos dão à luz, segundo dados do SUS de 2022. Crianças que tiveram inúmeros direitos ceifados, mas cuja triste realidade não levou a uma mobilização nacional nem política. E o que se viu nos últimos dias de articulações em Brasília, especialmente no Congresso Nacional, mostra um cenário ainda mais estarrecedor quanto ao descaso com a proteção de vulneráveis no país.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

"Utilizar a temática do aborto em períodos eleitorais sempre foi uma praxe, muito especialmente quando as adversárias políticas são mulheres. Agora, o momento atual é particularmente especial, porque nós temos o Congresso formado por uma maioria de conservadores, conservadoras, com posições, inclusive, num nível mesmo de perseguição às mulheres", avaliou a pesquisadora e jurista Soraia Mendes.

Pelas mãos da extrema direita com as bençãos da bancada evangélica, nota de apoio da Igreja Católica e o prolongado silêncio de um governo de esquerda, a Câmara dos Deputados de Arthur Lira (PP/AL) garantiu a aprovação do regime de urgência ao projeto que pode punir a vítima e de forma até mais severa que o estuprador, num país onde uma mulher ou menina é violentada sexualmente a cada oito minutos.

"Se uma proposta dessa vira lei, as mulheres terão muito mais medo de buscar a realização de um aborto em casos de estupro após a 22ª semana. E o que dizer de crianças nessa situação? Imagine no interior do país, em localidades distantes de centros médicos. Portanto isso vai garantir mais impunidade aos agressores", afirmou Mendes. 

A advogada ressalta que o projeto fere princípios constitucionais, tratados internacionais de Direitos Humanos, de proporcionalidade nas penas e ainda traz um elemento perverso. "Eles falam em defender a vida, mas como defender a vida se não protege a vida das próprias crianças? Fazer uma criança de 9, 10 anos levar adiante uma gravidez em um corpo que sabidamente não é um corpo preparado para uma gravidez e que pode realmente resultar na sua morte. E uma criança vítima de estupro.  É absolutamente perverso", protesta Soraia Mendes.      

Mobilização da sociedade                                                              

A reação de alguns atores políticos, incluindo o governo Lula, só veio depois que a sociedade civil se mobilizou. "Há neste momento no Brasil uma forte e importante reação da sociedade, com manifestações de rua e uma movimentação enorme nas redes sociais. Por outro lado, a Igreja Católica emitiu uma nota de apoio ao projeto, sem a menor compaixão com as mulheres", observou à RFI a socióloga Maria José Rosado, presidente da ONG Católicas pelo Direito de Decidir.

"Sabemos, ainda assim, que há sacerdotes, teólogas, teólogos que se expressam contrários a esse posicionamento institucional da igreja, que desenvolvem argumentos em defesa da mulher, como um que faz parte da mais antiga tradição cristã, que é o recurso à própria consciência, quando o que está em questão é algo de difícil decisão. Decisão que pela gravidade não cabe ao padre, não cabe a terceiros, mas à mulher", disse Rosado.

Continua após a publicidade

Para a socióloga, a obsessão pelo tema aborto, que gera reações inflamadas de fieis de várias vertentes e muitas vezes é posto por políticos como régua de valores, evidencia muito da sociedade brasileira.

"A diferença de tratamento de mulheres e homens nesse caso é a expressão de uma sociedade misógina, patriarcal, hierárquica e, no nosso caso, muito fortemente racista, que violenta as mulheres e as condena, mas que não condena os homens que abandonam as mulheres com suas crianças, e as deixam como responsáveis únicas pela criação e o cuidado com filhas e filhos. O índice de mulheres que são chefes de família no Brasil é altíssimo", argumentou Rosado.

O grito de repúdio ao projeto não veio apenas de movimentos que querem a descriminalização do aborto, mas também de quem considera o assunto delicado, porém não admite que a vítima seja mais punida que o estuprador. Ainda reforçaram o coro aqueles que avaliam como razoável a atual legislação, que garante interrupção da gravidez em caso de risco à gestante, anencefalia e estupro, direito que não é respeitado hoje, pontuou à RFI a sanitarista Fabiana Pinto, que integra o Movimento Mulheres Negras Decidem:

"Na cidade de São Paulo, de 2019 a 2022, oito abortos legais foram feitos por ano em crianças entre 10 e 14 anos. Nesse período foram 371 partos de crianças de 10 a 14 anos por ano. Lembrando que cada uma dessas crianças que teve a sua infância atravessada pela maternidade tinha o direito a um aborto legal e que não foi cumprido. Porque caso de gestação nessa idade é considerado um caso de estupro de vulnerável."

Fabiana Pinto lembrou uma resolução de abril deste ano quando o Conselho Federal de Medicina tentou impor o mesmo limite de semanas à interrupção de gravidez, inclusive em caso de violência. Para ela, isso é prova de que um ator importante nessa questão precisa levar em conta direitos assegurados em lei para mulheres e crianças.

"Os fundamentos dessa resolução do CFM passaram a ser utilizados para perseguir médicas e médicos que estavam realizando esse procedimento de forma legal, porque a legislação brasileira não trata de tempo máximo de semanas. É grave que o órgão regulador da profissão defenda a criminalização de mulheres e meninas que buscam um aborto seguro e legal. É preciso ter uma formação médica verdadeiramente comprometida com os direitos humanos, direitos de mulheres e meninas e com a legislação brasileira em vigor hoje", afirmou a sanitarista.

Deixe seu comentário

Só para assinantes