Julgamento de bombeiros por abuso sexual de menor relança debate sobre 'consentimento' na França

Começa nesta terça-feira (15) na França o julgamento de três bombeiros acusados de abuso sexual de menor. O julgamento que ficou conhecido como "caso Julie" colocou em debate a noção de consentimento no ato sexual, muito antes do julgamento de Mazan, em que Dominique Pelicot é acusado de ter sedado sua mulher para que outros homens a estuprassem. O caso também gerou revolta de associações de defesa de direitos das mulheres porque a Justiça francesa não reconheceu a acusação de estupro, apesar de a vítima ser menor de idade na época da agressão.

Durante dois dias, a partir desta terça-feira, comparecem diante do tribunal de Versalhes, por abuso sexual coletivo contra uma menor, três bombeiros.

Dos 13 aos 15 anos, Julie (nome fictício), hoje com 29 anos, que vivia com a família nos subúrbios de Paris, estava sob tratamento médico pesado, à base de antidepressivos, ansiolíticos e neurolépticos, devido a frequentes crises de espasmofilia e tetania, caracterizadas por ansiedade e palpitações.

Diante das crises, a mãe da menina chamava os bombeiros para ajudá-la. Entre 2008 e 2010, eles foram chamados mais de 130 vezes na casa da vítima.

Em agosto de 2010, a adolescente de 15 anos e sua mãe prestaram queixa por estupros, na delegacia de Hay-les-Roses, em Val-de-Marne, no sudeste de Paris, contra os bombeiros Pierre C. e Julien C. por estupro coletivo e Jérôme F. por agressão sexual. Os fatos teriam ocorrido no ano anterior.

Durante as investigações, que levaram cerca de 10 anos, a polícia descobriu que entre 2009 e 2010, aproximadamente 20 bombeiros, com idades entre 18 e 26 anos, tiveram relações sexuais com a adolescente, em diferentes lugares, até mesmo no estacionamento do hospital de psiquiatria infantil onde ela estava internada. Segundo a investigação, Julie era chamada entre os acusados por um apelido pejorativo, que em português seria algo parecido com "vadia".

Em 2019, três deles foram encaminhados à Justiça por abuso sexual coletivo de menor, ocorrido em 2009.

Consentimento no centro do caso

Assim como no julgamento de Mazan, onde 51 homens são acusados ??de terem estuprado Gisèle Pelicot, anteriormente drogada pelo seu marido Dominique Pelicot, a questão do consentimento está no centro do caso.

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Inicialmente, os três bombeiros foram indiciados por estupro. Mas em julho de 2019, um juiz reclassificou os fatos como abuso sexual, que constitui o nível mais baixo de ofensa sexual, sem violência, coerção, ameaça ou surpresa e diz respeito apenas a vítimas menores de idade.

A reclassificação, confirmada em recurso e depois em cassação, despertou indignação de associações e da família.

Emmanuelle Handschuh, membro da coordenação nacional do movimento feminista Nous Toutes (Nós Todas), diz que a reclassificação como parte da "cultura do estupro" e da "presunção de consentimento" que considera "impressionante" diante do relato de Julie.

Desde abril de 2021, uma nova lei na França estipula que não existe consentimento sexual da parte de um menor de 15 anos (menos de 18 anos em caso de incesto). Mas os acusados são julgados conforme a antiga lei, já que o texto penal não tem efeito retroativo.

Perícia psiquiátrica contestada

O juiz que instruiu o caso decidiu levar em conta as declarações dos três bombeiros, maiores de idade, que "garantiram constantemente" que a adolescente "não demonstrou relutância". Estas afirmações, bem como uma perícia psiquiátrica da menina, que a descreveu como "tendo propensão para a confabulação", levaram o magistrado a concluir que "nenhum elemento de violência, ameaça, constrangimento ou surpresa (foi) caracterizado".

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Os familiares da jovem, denunciaram uma perícia incriminatória e solicitaram uma segunda opinião, recusada pelo juiz. Julie e sua família também solicitaram o indiciamento dos outros 17 bombeiros. Eles foram interrogados e admitiram terem tido "relações sexuais" com a adolescente. A maioria negou saber que ela era menor de idade.

Pierre C., um dos três bombeiros levados a julgamento, admitiu que ficou sabendo a idade de Julie durante uma intervenção na casa dela. Ele "quer se explicar e expressar seu arrependimento", disse sua advogada, Daphné Pugliesi.

Ele afirma ter iniciado "um relacionamento" com a vítima e "não queria terminar" quando soube a idade dela, mas negou qualquer coação.

Julie admite ter saído com ele durante vários meses em 2009, mas afirma que ele levou dois colegas para terem relações sexuais com ela sem seu consentimento. Pierre C. afirma que chamou os colegas atendendo pedidos da vítima.

"Uma menina de 13 anos não tem uma relação consensual com um bombeiro de 19 ou 20 anos. Ela era uma criança", protesta Emmanuel Daoud, advogado de Julie e sua família, que solicitou que a primeira sessão do julgamento fosse realizada a portas fechadas.

"Estes homens adultos, cuja função é ajudar os outros, não hesitaram em usar esta criança como brinquedo sexual", denuncia, destacando o estado de saúde particularmente frágil da vítima.

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 "As expectativas de Julie e de seus pais são imensas", depois "da maratona e do calvário jurídico que lhes foi imposto", diz o advogado.

"Para mim, o mais difícil, o mais violento, é dizer a si mesmos que serão julgados por abuso sexual e não por estupro", disse a mãe de Julie, que espera que "seja finalmente feita justiça" à sua filha e que os advogados de defesa sejam "respeitosos".

Atualmente com 29 anos, Julie sofre com deficiências físicas e neurológicas graves devido a várias tentativas de suicídio.

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