Caso Pelicot: todos os 51 réus são considerados culpados e ex-marido recebe pena de 20 anos de prisão

A Justiça da França condenou nesta quinta-feira (19) Dominique Pelicot à pena máxima de 20 anos de prisão por drogar durante uma década sua então esposa Gisèle para estuprá-la ao lado de dezenas de desconhecidos. Os outros 50 réus também foram declarados culpados.

Os cinco magistrados do tribunal de Avignon, sul da França, seguiram assim o pedido de pena do Ministério Público neste grande julgamento por estupro, no qual os 51 réus foram declarados culpados.

A essa pena de prisão para Dominique Pelicot está associada uma pena de segurança dos "dois terços", precisou o presidente do tribunal criminal de Vaucluse (sudeste da França), Roger Arata, acrescentando que, ao final da pena, sua situação "será reavaliada para julgar sua periculosidade". Além disso, ele será registrado no arquivo nacional francês de criminosos sexuais.

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Há quatro meses, ela era uma desconhecida. Hoje, Gisèle Pelicot, 72 anos, se tornou um símbolo da luta contra a violência de gênero e sexual, chamando atenção para a prática da submissão química e, mais amplamente, levantando debate sobre as relações entre homens e mulheres.

Os estupros cometidos por desconhecidos e planejados por seu marido poderiam tê-la destruído, mas a francesa Gisèle Pelicot decidiu enfrentar seus agressores nos tribunais para exigir que "a vergonha mude de lado" e virou um ícone feminista mundial.

Desde a sua abertura do processo, ela foi apoiada no tribunal por sua coragem, ao abrir mão do anonimato, apesar da atrocidade dos fatos relatados. Mas naquele 2 de setembro de 2024, a vergonha "mudou de lado", de acordo com as próprias palavras da vítima. 

O jornal Le Figaro desta quinta-feira (19) analisa como a opção por "um julgamento a portas abertas muda a prática habitual nos processos de violência sexual, que normalmente são realizados apenas na presença das partes envolvidas". Para Denis Salas, ex-magistrado e ensaísta ouvido pelo diário, "esta divulgação dos debates é um ato quase político". 

Com a exibição de vídeos, não se trata de um confronto entre a "palavra de um e de outro", como costuma acontecer nesses casos. Porém, "mesmo que estas imagens sejam decisivas, elas são apenas uma prova entre outras e o desafio para os juízes é obter distanciamento para construir motivação e definir culpa", completa Salas.

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Para o jornal Libération, o caso Pelicot "serve como um termômetro sobre como a justiça trata casos de violência sexual na França", destacando que em "86 % dos casos são arquivados", segundo dados do Instituto de Políticas Públicas. Associações feministas pedem mudanças na legislaçã e uma soma de 2,6 bilhões de euros para a luta contra violências sexuais, que fazem mais de 200.000 vítimas por ano na França. 

Em outra reportagem, o Libération analisa a onda de apoio que recebeu Gisèle Pelicot de mulheres no mundo inteiro. "Essa sororidade internacional abre uma via: a de um mundo onde as violência sexuais sejam combatidas ardentemente e as vítimas não se sintam sozinhas".  

Renúncia ao anonimato

Em setembro, quando o julgamento contra seu agora ex-marido e outros 50 réus começou em Avignon, sul da França, os jornalistas viram uma mulher de cabelo curto, ruiva, escondida atrás dos óculos escuros.

A vítima era uma avó cujo companheiro de vida de meio século admitiu que a drogou entre 2011 e 2020 para deixá-la inconsciente e estuprá-la, ao lado de dezenas de homens desconhecidos que ele contactou pela internet.

Mas Gisèle renunciou ao direito de anonimato e exigiu uma autorização de acesso do público ao julgamento para aumentar a conscientização sobre a submissão química, o uso de drogas para cometer agressões sexuais.

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A mulher de 72 anos conquistou o coração da França e, além disso, provocou uma onda em sua homenagem, após afirmar que seus agressores, e não ela, eram aqueles que deveriam sentir vergonha.

"Eu queria que todas as mulheres vítimas de estupro afirmassem: 'Se Gisèle Pelicot fez isso, nós podemos fazer'", declarou em outubro. "Não quero que (as vítimas) sintam mais vergonha, e sim, os agressores", acrescentou.

O julgamento foi acompanhado por manifestações de apoio na França, onde várias pessoas começaram a aplaudi-la e a oferecer flores quando ela chegava ao tribunal.

E, aos poucos, Gisèle Pelicot tirou os óculos escuros.

"Um estupro é um estupro"

Em dezembro, a emissora britânica BBC a incluiu na lista de 100 personalidades femininas do ano, ao lado da sobrevivente de estupros em série e vencedora do Nobel da Paz Nadia Murad e da ginasta brasileira Rebeca Andrade.

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Gisèle obteve em agosto o divórcio de seu marido Dominique Pelicot. O homem de 72 anos admitiu as agressões sexuais, que documentou meticulosamente por anos com fotos e vídeos.

Sua ex-mulher se mudou para longe de Mazan, a cidade no sul da França onde a maioria dos estupros ocorreu e onde foi tratada como "um pedaço de carne", uma "boneca de pano" em sua casa, em suas próprias palavras.

Ela agora usa seu sobrenome de solteira, mas durante o julgamento pediu à imprensa que utilize o sobrenome de casada, que passou a alguns de seus sete netos.

Em meados de setembro, Gisèle abandonou sua reserva habitual para expressar a raiva pela humilhação que sentiu quando vários advogados insinuaram uma possível cumplicidade. "Um estupro é um estupro", respondeu.

Durante o julgamento, ela pediu que a sociedade "machista e patriarcal" mude sua atitude em relação ao estupro e falou sobre sua indignação por nenhum de seus agressores ter alertado a polícia. Alguns a estupraram até seis vezes.

Alguns réus se defenderam alegando que acreditavam participar de uma fantasia de um casal libertino, pois tinham o consentimento do marido, um exemplo de sua "covardia", na opinião da vítima.  

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Lapsos de memória

Alguns réus admitiram os estupros. Mas outros 20 suspeitos seguem em liberdade porque os investigadores não conseguiram identificá-los antes do macrojulgamento.

Filha de um militar francês, Gisèle nasceu em Villingen, no sudoeste da Alemanha, em 7 de dezembro de 1952 e se mudou para a França com cinco anos. Quando tinha nove anos, sua mãe morreu de câncer com apenas 35 anos.

Quando seu irmão Michel faleceu vítima de um ataque cardíaco em 1971, aos 43 anos, ela ainda não havia completado 20. No mesmo ano, conheceu Dominique Pelicot, seu futuro marido e agressor sexual.

Seu sonho era ser cabeleireira, mas ela fez um curso de datilografia. Após alguns anos de trabalhos temporários, Gisèle desenvolveu toda a sua carreira no grupo elétrico francês EDF, onde terminou como responsável por um departamento de logística para centrais nucleares.

Em casa, cuidou de seus três filhos e depois dos sete netos. Quando se aposentou, ela gostava de caminhar e cantar em um coral local.

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Apenas quando a polícia flagrou seu ex-marido filmando por baixo das saias de uma mulher em um shopping em 2020, ela descobriu a razão de seus preocupantes lapsos de memória.

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