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De Nero (Wolfe) ao 'noir'

Umberto Eco

30/12/2014 00h01

É difícil entender o que distingue o gênero 'noir' da ficção policial clássica --ou seja, algo além das alegações da superioridade literária do 'noir', que muitas vezes acaba por não ser superior de forma alguma. Estas alegações apenas ajudam os fãs do 'noir' a se sentirem mais refinados ao lerem no ônibus ou debaixo do guarda-sol.

Eu sempre me sinto um pouco envergonhado quando as pessoas falam comigo de um romance 'noir', especialmente porque se abusa tanto desse termo atualmente nas críticas ou na propaganda. Um 'noir' certamente não é um 'giallo', que literalmente significa amarelo [em italiano]. É assim que os italianos (e apenas os italianos) chamam, ou costumavam chamar, os romances policiais clássicos com personagens lendários como Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Nero Wolfe e muitos outros. (O amarelo vem das capas dos livros publicados na Itália pela Mondadori.) O formato desses clássicos é familiar: um crime é cometido, quebrando a paz local; um intelecto superior assume o trabalho de interpretar várias pistas; no final, o autor do crime é desmascarado e a ordem é restaurada.

A ruptura com este estilo de ficção policial veio nas primeiras décadas do século passado, com o desenvolvimento do romance americano “hard-boiled” com a obra de Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Peter Cheyney, James Hadley Chase, Horace McCoy e Mickey Spillane. Essas histórias são repletas de defuntos, e pode haver mais de um perpetrador. Mas o detetive não é um intelecto superior como Holmes nem um estranho ao mundo do crime no qual se envolve. Na verdade, ele faz parte desse mundo e às vezes adota seus métodos. Como resultado, ele ocasionalmente tem que sofrer algumas surras. Ele pode ser essencialmente honesto, mas nunca está completamente limpo, porque o pano de fundo do romance 'noir' é uma sociedade doente.

Alguns pensam que o apetite pelo gênero 'noir' começou em 1945 com o selo editorial francês Série Noire. Mas o selo consiste principalmente de traduções francesas de romances da tradição "hard-boiled" americana. Marcel Duhamel, que fundou a Série Noire, apresentou uma espécie de manifesto em defesa da coleção, advertindo que os amantes de enigmas ao estilo de Sherlock Holmes se sentiriam pouco confortáveis com esses contos, com policiais mais corruptos que os criminosos, e que, por vezes, não haveria nem mesmo um mistério --ou um detetive. Haveria apenas ação. Como nos filmes, o estado de espírito dos personagens seria traduzido em ações, azar o dos leitores ávidos por introspecção.

Isso talvez sirva para ilustrar o romance "hard-boiled", mas não nos ajuda a interpretar as situações muitas vezes encontradas na variedade 'noir'. Cerca de 25 anos atrás, a jornalista italiana Irene Bignardi escreveu que o 'noir' é sobre “inquietação, insegurança, angústia, a realidade do bandido selvagem... representa a impossibilidade de colocar as coisas em ordem, de restabelecer a ordem, porque não há nenhuma ordem”.

Enquanto em muitos romances 'noir' o herói é mais um anti-herói do que qualquer outra coisa, ele não costuma sair pelos antros provocando criminosos; na verdade, às vezes, a violência é bastante modesta. Mas o fator preponderante de um 'noir' é a percepção preocupante de que há algo fundamentalmente errado com a sociedade em geral. (No romance policial tradicional, a única coisa que é ruim é o criminoso, e quando ele é eliminado, a sociedade volta a funcionar tão bem quanto antes.)

Em um romance 'noir' o detetive não é apenas um clichê com idiossincrasias características, como Poirot ou Philo Vance, nem é definido apenas por suas ações, como Sam Spade. O que o distingue é a sua profundidade psicológica --apesar de essa característica muitas vezes também estar presente na ficção policial clássica (ver a obra de Georges Simenon, por exemplo). E certos romances são descritos como 'noir' quando, de fato, são obras de ficção policial, como os de Andrea Camilleri.

Então surge uma suspeita: certo ou errado, o romance policial tradicional foi considerado um produto para as bancas de jornal, sem nenhuma relação com a literatura, enquanto o termo 'noir' era reservado para os romances vendidos em livrarias e com qualidades literárias reconhecidas.

Independentemente dos temas e do estilo associado ao 'noir', o gênero é, em grande parte, apenas uma construção comercial com um nome francês mais refinado. Consequentemente, muitos livros que não são realmente do gênero acabam nos bolsos de nossos casacos. E eu ainda estou tentando descobrir o que é exatamente um 'noir'.

(Umberto Eco é autor dos best-sellers internacionais “Baudolino”, “O Nome da Rosa” e “O Pêndulo de Foucault”, entre outros.)