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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Mendes e as luzes que Kássio apagou; há liberdade de culto na forma da lei

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

06/04/2021 04h50

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O Brasil ainda vai sair do buraco? Lendo a liminar concedida pelo ministro Kássio Nunes Marques a uma certa Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), a gente pode ser tentado a dizer que não. Ao tomar conhecimento do voto do ministro Gilmar Mendes, que, por seu turno, negou liminar em outra ação movida pelo PSD — esta para suspender o decreto do governo de São Paulo que decidiu manter fechadas as igrejas nessa fase da pandemia —, a gente se vê inclinado a alguma esperança.

Mendes negou a liminar e remeteu imediatamente a questão para pleno. Luiz Fux, presidente da Corte, pautou a questão para quarta-feira. O tribunal vai, então, se posicionar, por óbvio, também sobre a medida cautelar de Kássio Conká. Na prática, o tribunal vai tomar uma decisão redundante, o que expõe, de novo, a aberração do voto de Conká. Afinal, por 11 a zero, a corte já decidiu competência concorrente dos entes da federação para decidir o que pode funcionar ou não, com base em dados epidemiológicos. Como não se excetuaram as igrejas, há um absurdo essencial no conjunto da obra, a que nos conduziu o mais recente membro da Corte.

Já evidenciei os horrores técnicos do voto de Conká. Deve ser uma das peças mais exóticas produzidas no tribunal. E olhem que ele concorre consigo mesmo. O seu voto negando a suspeição de Moro entrará para os, como posso escrever?, anais da história. Ainda será matéria de curiosidade acadêmica. Também a sua liminar permitindo o funcionamento das igrejas há de figurar nos manuais dos anais. Entre outras preciosidades, o doutor concedeu uma liminar a pedido de um agente que ele mesmo considera ilegítimo para apresentar a petição.

DETALHES DO VOTO DE MENDES
O voto de Mendes traz algumas passagens luminosas sobre esse tempo de trevas. Ora, anular o decreto do governo de São Paulo por quê? Com base em qual fundamento? O ministro lembra: a proibição dos cultos presenciais não é uma decisão imotivada, tomada num vácuo de causas ou numa esfera de opiniões vagas. Escreve:

"O Decreto que aqui se impugna não foi emitido "no éter", mas sim no país que, contendo 3% da população mundial, concentra 33% das mortes diárias por covid-19 no mundo, na data da presente decisão. O mesmo país cujo número de óbitos registrados em março de 2021 supera o quantitativo de 109 países somados".

O ministro destaca que, com efeito, a Constituição assegura a liberdade religiosa. Mas indaga para responder em seguida: será mesmo que o decreto do governo de São Paulo a agride? Afirma::
"Quer me parecer que apenas uma postura negacionista autorizaria resposta em sentido afirmativo. Uma ideologia que nega a pandemia que ora assola o país, e que nega um conjunto de precedentes lavrados por este Tribunal durante a crise sanitária que se coloca".

Indaga o ministro:
"O Decreto do Estado de São Paulo de alguma maneira impede que os cidadãos respondam apenas à própria consciência, em matéria religiosa? A restrição temporária de frequentar eventos religiosos públicos traduz ou promove, dissimuladamente, alguma religião? A interdição de templos e edifícios equiparados acarreta coercitiva conversão dos indivíduos para esta ou aquela visão religiosa? Certamente que não. Por isso, entendo que não há como articular as restrições impostas pelo Decreto com o argumento de violação ao dever de laicidade estatal".

O PRINCÍPIO E A FORMA DA LEI
Em tempos em que peças que saem de algumas penas parecem redigidas no joelho, é bom ter contato com o rigor técnico. E, por óbvio, convém atentar para o que está na Constituição, no Inciso VI do Artigo 5º, que é cláusula pétrea. Relembro:
"VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".

Assim, há aquilo que não depende "da forma da lei", a saber: "a liberdade de consciência e de crença". Mas o exercício dessa religião está, sim, delimitado pela lei. Se, amanhã, em nome de convicções religiosas, alguma seita decidir que é preciso sacrificar recém-nascidos, por exemplo, seu campo de ação será restringido pela lei.

Escreve Gilmar Mendes:
"É digno de destaque que o constituinte, ao prescrever o direito de liberdade religiosa, estabeleceu inequívoca reserva de lei ao exercício dos cultos religiosos. Nesse sentido, o inciso VI do art. 5º assegura "o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei". Essa reserva legal, por si só, afasta qualquer compreensão no sentido de afirmar que a liberdade de realização de cultos coletivos seria absoluta."

Pondera o ministro, citando livro de própria lavra, em companhia de outro autores:
"Como já tive a oportunidade de esclarecer no âmbito doutrinário, a lei deve proteger os templos e não deve interferir nas liturgias, "a não ser que assim o imponha algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese considerada".

De resto, meus caros, a fé, nas democracias, não pode depender da vontade do Estado. Mas as políticas de Estado, voltadas para o interesse da coletividade, também não podem depender da fé. Assim, igreja e Estado são entes que declararam a independência da reciprocidade.

O JÁ JULGADO
Mendes lembra ainda a ampla e eloquente jurisprudência do Supremo que garante a Estados e municípios, no seu âmbito de atuação, a competência para adotar medidas restritivas, de acordo com a evolução da pandemia.

É, de algum modo, estarrecedor que tudo isso tenha de ser lembrado. Mas, se isso se faz necessário, que o seja, então, segundo as balizas do bom direito. Recomendo que leiam o voto de Gilmar Mendes ao negar medida cautelar ao PSD. Ele acendeu as luzes que Kássio Conká apagou.