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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Decisão de Kássio Conká sobre templos é uma soma estúpida de aberrações

Kássio Nunes Marques, do Supremo. Liminar concedida pelo ministro constrange mesmo as almas mais pias... - Edilson Rodrigues/Agência Senado
Kássio Nunes Marques, do Supremo. Liminar concedida pelo ministro constrange mesmo as almas mais pias... Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Colunista do UOL

04/04/2021 08h45

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O ministro Nunes Marques, o Kássio Conká do Supremo, concedeu uma liminar liberando cultos religiosos no pior momento da pandemia, desde que a ocupação se limite a 25% da capacidade, com uso de medidas protetivas e álcool em gel. É asqueroso. Ainda que decisão fosse legal e moral, quem vai fiscalizar? A liminar colide com votação unânime do tribunal, que reconhece a competência concorrente dos órgãos da federação na aplicação de medidas restritivas. Não obstante, ele conta com o apoio de André Mendonça, da Advocacia Geral da União, e de Augusto Aras, procurador-geral da República. Estamos diante de uma soma de aberrações. Vamos por partes.

ILEGITIMIDADE E ILEGALIDADE
A decisão de Kássio Conká é, acreditem, ilegal. E ele próprio o reconhece. O ministro atendeu a pedido de liminar em ADPF (Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental) impetrada pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure).

Ocorre que essa associação não tem legitimidade para isso. Podem apelar a esse remédio os mesmos agentes que podem recorrer a Ações Diretas de Inconstitucionalidade, segundo estabelece o Artigo 103 da Constituição, a saber: presidente da República, as Mesas do Senado, da Câmara e de Assembleias Legislativas, governadores, o procurador-geral da República, o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso e confederação sindical ou entidades de classe de âmbito nacional.

A tal associação de juristas evangélicos não é nada disso. Kássio Conká se cobre de novo de vergonha. Ou não se cobre. É preciso descobrir primeiro onde ela se esconde.

O QUE DISSE A AGU
A própria Advocacia Geral da União reconheceu a ilegitimidade da Anajure para ingressar com uma ADPF. A AGU aponta:
a) a ilegitimidade ativa da Anajure;
b) inobservância do princípio da subsidiariedade;
c) ausência de indicação dos atos impugnados;
d) impossibilidade de controle abstrato de norma com eficácia exaurida;
e) ofensa [no sentido de pertinência] meramente reflexa à Constituição Federal.

O PRÓPRIO MINISTRO ADMITE
O mais espantoso -- e Kássio Conká deixa claro que o limite da sujeição não era seu voto sobre a suspeição de Sergio Moro -- é que o próprio ministro admite a ilegitimidade da Anajure para impetrar a ação. Ele escreve em sua liminar:
"Não se ignora que, no julgamento do Agravo Regimental na ADPF 703/BA, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 17/02/2021, este Tribunal considerou que a ora autora não seria parte legítima. Contudo, este caso possui premissas fáticas distintas, a atrair assim o distinguishing. Com efeito, aqui o provimento buscado pela Associação guarda relação fundamental com seus objetivos essenciais, consistentes na proteção da liberdade religiosa. Por prudência, ao menos neste momento processual, esta Suprema Corte deve prestigiar a instrumentalidade do processo, na medida em que o objeto desta ação diz com a proteção da liberdade de culto e religião, garantia constitucional."

Como se nota, o "direito de defesa" do juiz cuja suspeição se julga não é a única inovação que este gênio da raça pretende levar ao Supremo. Ele agora está com uma tese nova: a tal "instrumentalização do processo" conferiria legitimidade a quem não a tem.

CONSTITUCIONALISMO DA INFLUÊNCIA
Kássio Conká veio para redesenhar tudo o que se sabe sobre direito. Nada será como antes. Então vamos ver:
- ele ignorou votação unânime do Supremo sobre a competência concorrente dos entes da federação para impor medidas restritivas;
- ele reconheceu que a autora da ação não tem legitimidade para impetrá-la.

Mas não parou por aí. É prática corrente que ministros recorram ao direito comparado, cotejando o que se dá no Brasil com legislações de outros países, quando estão formulando um voto. Ignorar, no entanto, a Constituição nativa e o que já está pacificado na própria Casa para macaquear o que se fez em outro país é coisa inédita. Está em sua liminar:

"No recente julgamento do caso South Bay United Pentecostal Church v. Newson (592 U.S._2021) (disponível em: 20A136 South BayUnited Pentecostal Church v. Newsom (02/05/2021) (http://supremecourt.gov), a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou legítima a restrição de público em cultos religiosos (tolerando a ocupação de até 25% da capacidade dos templos), mas considerou inconstitucional a proibição completa dos cultos religiosos."

E Acrescentou:
"No Brasil, inegável que houve influência do constitucionalismo norte-americano em diversos momentos históricos. Sem dúvida, a Constituição de 1891, obra de Ruy Barbosa, foi fortemente influenciada pela Constituição norte-americana, inclusive na previsão de direitos e garantias fundamentais, na tripartição de Poderes e na possibilidade de o Judiciário exercer o controle de constitucionalidade dos atos do Executivo e do Legislativo.

E conclui:
"Dessa forma, entendo que a solução adotada pela Suprema Corte (592 U.S. 2021) no caso acima mencionado compatibiliza a necessidade de distanciamento social, decorrente da epidemia da Covid-19, com a liberdade religiosa".

Vocês não estão experimentando nenhum delírio. Não tendo como ancorar, ou escorar, seu voto na Constituição do país ou em matéria votada no Supremo — e reconhecendo a ilegitimidade do peticionário —, Kássio Conká houve por bem copiar uma decisão tomada pela corte norte-americana.

Já dá para saber qual é a desse cara no Supremo e que papel está exercendo lá.