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Após 20 anos, mulher volta ao local onde marido morreu em chacina no Rio

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

29/08/2013 06h00

Iracilda Toledo Siqueira, 56, deixou o jantar pronto para o marido, Adalberto de Souza, na noite do dia 29 de agosto de 1993. Aquela seria a última vez em que ela cozinharia para ele. Souza estava em um bar perto de casa comemorando a vitória do Brasil em partida contra a Bolívia, e a consequente classificação para a Copa do Mundo do ano seguinte.

O estabelecimento se transformaria, horas depois do último apito do juiz, em palco sangrento da chacina de Vigário Geral, favela da zona norte do Rio de Janeiro. A tragédia completa 20 anos nesta quinta-feira (29). Os crimes foram cometidos por um grupo de extermínio formado por policiais militares.

Acompanhada da reportagem do UOL, que visitou a comunidade nesta quarta-feira (28), Iracilda pisou pela primeira vez no imóvel onde ficava o bar do Joacir --também morto na chacina. "Quando jogaram a bomba dentro do bar, meu marido foi um dos mais prejudicados. A explosão queimou o rosto dele. Depois de 20 anos, eu entrei ali agora. Assim mesmo, entrei na porta e voltei. Foi uma sensação horrível", disse.

Relato

O Beto falou que não queria a gente na rua no domingo. Mas tinha um bingo aqui na praça e eu tinha comprado a cartela. Eu bem falei que, já que ele estava trabalhando, eu iria no bingo. Mas por sorte ou obra do destino meu filho ganhou uma cartela, e acabou ganhando uma lata de óleo e uma lata de leite condensado. Acabei desistindo de ir ao bingo.

Quando meu marido chegou em casa, ele viu as latas na cozinha e perguntou o que era. Eu falei que o Humberto [filho] tinha ganhado no bingo. Ele falou assim: 'Eu falei para vocês não ficarem na rua porque hoje vai ter problema'.

Começou o jogo entre Brasil e Bolívia. Ele assistiu. Quando acabou, ele disse que iria na rua comprar cigarro no bar do Joacir. Aquele era o 'point' deles. Ele e os amigos sempre estavam naquele bar. Todo mundo era família e trabalhador. (...) Eu fui para a igreja e, quando eu voltei, ainda avistei o meu marido no bar. Ele estava com uma camisa jogada no ombro e uma bermuda branca.

Eu cheguei em casa e meu filho disse: 'Mãe, meu pai está lá no bar comemorando o Brasil'. Nesse dia, o Brasil venceu a Bolívia por 2 a 0 e se classificou para a Copa de 1994.

Arrumei a janta para o meu marido e deitei para dormir. Quando foi por volta de 0h, o meu cunhado bateu no teto. Eu morava na casa de cima e a gente criou um hábito: sempre que havia um problema, o meu cunhado dava três toques no teto. Eu escutei o meu cunhado muito apavorado pedindo para chamar o Beto [marido]. Quando eu falei com ele, a minha cunhada disse que havia muita gente morta na favela. Eu desci a escada para tentar falar com ele e ajudar.

Encontrei o meu sogro na porta e ele pediu que eu chamasse o Beto para que ele pudesse ajudar. Mas eu respondi que ele estava no bar do Joacir, e aí o meu sogro se apavorou. 'Pelo amor de Deus, lá está todo mundo morto!', gritou ele. Eu pensei logo que ele pudesse estar em outro lugar. Eu queria fugir da verdade. Ainda fiquei esperando alguém vir relatar que ele estava vivo. Eu pergunta e as pessoas não comentavam. Passavam por mim e não falavam nada.

Todo mundo que saía daqui eu perguntava. Quando eu disse ao meu compadre que o Beto estava no bar, ele foi ao local para ver. Quando ele voltou, eu fui de encontro a ele e perguntei se ele tinha visto o Beto. Ele respondeu que o meu marido estava morto.

Naquela hora tudo desabou. Eu me vi numa situação onde eu teria que dar aquela notícias aos meus filhos. Eu dependia dele pra tudo. Eu não saía sozinha, não fazia uma compra. Eu me vi numa situação onde eu falei: 'Agora é hora. Agora eu vou ter que arregaçar a manga e ir pra luta'.

Quando jogaram a bomba dentro do bar, meu marido foi um dos mais prejudicados. A explosão queimou o rosto dele. Depois de 20 anos, eu entrei ali agora. Assim mesmo, entrei na porta e voltei. Foi uma sensação horrível. Parece que você não teve força para poder entrar. Eu não tive na época. Então a sensação é que eu vou entrar ali e vou ver aquela cena de novo.

A cena que mais me chocou foi quando subiram com o corpo dele na passarela. Aquilo foi muito duro. Todo dia de manhã ele saía para trabalhar às 5h. E repentinamente ver meu marido dentro de um caixote de alumínio sendo carregado por oito pessoas.

ENTENDA A CHACINA DE VIGÁRIO GERAL

  • Zeca Guimarães/Folhapress

    A chacina de Vigário Geral ocorreu no dia 29 de agosto de 1993. No total, 21 moradores morreram durante a ação criminosa de policiais militares que integravam um grupo de extermínio conhecido como "Cavalos Corredores". A motivação do crime teria sido quatro homicídios contra PMs do 9º BPM (Rocha Miranda) supostamente cometidos por traficantes da comunidade. No dia da vingança, porém, só havia inocentes na favela. Dos 52 acusados em um processo complexo, marcado por polêmicas e que posteriormente foi desmembrado, apenas sete policiais foram condenados, dos quais três conseguiram a absolvição em um segundo julgamento e um acabou sendo morto após fugir da prisão. Dos três que continuaram detidos, apenas um continua na prisão: o PM Sirlei Alves Teixeira, apontado como o mais violento do grupo de extermínio. Ele chegou a fugir do sistema prisional, em 2007, mas posteriormente foi preso em flagrante após participar de um assalto a uma agência da Caixa Econômica Federal, pelo qual foi condenado a oito anos de prisão pela Justiça Federal.