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"É como uma cicatriz que fica", diz mulher de morto em chacina no Rio

"A gente quer esquecer, mas não consegue", afirmou Maria dos Anjos Pereira Ferreira, viúva de uma das 21 vítimas da chacina de Vigário Geral - Reprodução/Documentário "Lembrar para não esquecer"
"A gente quer esquecer, mas não consegue", afirmou Maria dos Anjos Pereira Ferreira, viúva de uma das 21 vítimas da chacina de Vigário Geral Imagem: Reprodução/Documentário "Lembrar para não esquecer"

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

29/08/2013 06h00

Aos 61 anos, Maria dos Anjos Pereira Ferreira, mulher de Paulo Roberto dos Santos Ferreira, assassinado por um grupo de extermínio formado por policias militares na chacina de Vigário Geral, em 29 de agosto de 1993, diz que tenta, mas não é capaz de esquecer a noite que considera a mais aterrorizante de toda a sua vida. Ela ainda mora na mesma casa em que recebeu a notícia, na favela localizada na zona norte do Rio de Janeiro.

Relato

Aquela noite foi um terror, uma tristeza muito grande. A gente quer esquecer, mas não consegue. Meu marido era motorista de ônibus e estava de folga naquele dia. Como tinha um jogo do Brasil, com a Bolívia, ele foi para o bar assistir com os amigos. Com ele foram mais sete pessoas [assassinadas].

Fiquei em casa vendo televisão, minha filha foi dormir cedo porque tinha prova na escola no outro dia. Começaram os tiros, mas não dei muita atenção. Eu não podia imaginar... Os vizinhos começaram a gritar, a bater no meu portão, mas fiquei com medo e não fui abrir.

Um vizinho pulou o muro e bateu na minha janela. O reconheci e abri a porta. A mãe dele estava no portão com um copo de água e um comprimido na mão. Ela me mandou tomar a água e o comprimido e eu comecei a chorar.

“Você tem que ser forte”, me disse. Devia ter calmante na água também, fiquei muito tempo grogue. Sentei no sofá, sem saber direito o que fazer, e ela contou que tinham matado o Paulo Roberto, que na casa da frente [onde oito pessoas da mesma família foram assassinadas] só as crianças tinham sobrevivido e que eu precisava ir ao bar buscar os documentos dele.

Não quis sair de casa, estava muito escuro, eu estava com muito medo. Fiquei esperando passar a noite. Naquele tempo a gente não tinha telefone em casa e eu precisava ligar para a minha cunhada, avisá-la.

 A minha sogra tinha problema no coração e eu tinha medo de que acontecesse alguma coisa com ela se ela ficasse sabendo pelos jornais. Aí, pelas 4h e pouco, fui até um bar onde tinha um orelhão telefonar, mas eu estava tão louca, tão mal... Todo mundo enlouqueceu naquele dia.

Eu tremia, nem pensei em levar ficha de telefone para ligar. Encontrei com o então presidente da associação de moradores e pedi uma ficha emprestada, disse que meu marido tinha morrido no bar.

Ele me olhou e perguntou, “mas o Roberto também?”, e me contou que o filho dele tinha sido assassinado. Não tive mais condição de ligar. Esperei clarear e fui até a casa da minha sogra dar a notícia.

Meu cunhado voltou comigo, e quando a gente chegou as ruas estavam todas fechadas, cheio de televisão. Fui entrar no bar, mas não consegui chegar perto dele. Tinha todas aquelas pessoas mortas no chão, me sujei de sangue, tive que sair dali.

Depois meu cunhado voltou para pegar os documentos. Assim que a minha filha acordou dei a notícia para ela. Não sei o que foi mais difícil. Ela saiu correndo, tinha um cabelo comprido, a segurei pelo cabelo.

Deixei ela na minha vizinha, pra afastá-la um pouco daquela situação, mas ela ligou a televisão e a primeira imagem que apareceu foi a do pai dela. Ela tinha só 13 anos. Foi a partir daí que eu fui conhecer a comunidade, o que é viver em comunidade, recebi muita ajuda dos meus vizinhos.

Quando meu marido morreu eu não trabalhava, não tinha dinheiro e me vi sozinha tendo que criar a minha filha. Lavei até roupa para conseguir dinheiro enquanto não saía a pensão. O tempo passa, você tenta se acostumar, mas esquecer não dá. É como uma cicatriz que fica. Você toca nela e dói.

ENTENDA A CHACINA DE VIGÁRIO GERAL

  • Zeca Guimarães/Folhapress

    A chacina de Vigário Geral ocorreu no dia 29 de agosto de 1993. No total, 21 moradores morreram durante a ação criminosa de policiais militares que integravam um grupo de extermínio conhecido como "Cavalos Corredores". A motivação do crime teria sido quatro homicídios contra PMs do 9º BPM (Rocha Miranda) supostamente cometidos por traficantes da comunidade. No dia da vingança, porém, só havia inocentes na favela. Dos 52 acusados em um processo complexo, marcado por polêmicas e que posteriormente foi desmembrado, apenas sete policiais foram condenados, dos quais três conseguiram a absolvição em um segundo julgamento e um acabou sendo morto após fugir da prisão. Dos três que continuaram detidos, apenas um continua na prisão: o PM Sirlei Alves Teixeira, apontado como o mais violento do grupo de extermínio. Ele chegou a fugir do sistema prisional, em 2007, mas posteriormente foi preso em flagrante após participar de um assalto a uma agência da Caixa Econômica Federal, pelo qual foi condenado a oito anos de prisão pela Justiça Federal.