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Uma em cada três torturas no Brasil acontece dentro de casa, aponta estudo

Carlos Madeiro

Do UOL, em Maceió

27/01/2015 18h08

Um estudo inédito feito com base em dados de tortura que tramitaram no judiciário brasileiro aponta que um terço de todos os casos acontecem dentro da residência da vítima. Os agentes públicos –como policiais, agentes penitenciários e socioeducadores-- são acusados em 61% dos processos, contra 37% de pessoas comuns. Em 2% dos casos, o torturador não é identificado.

O levantamento “Julgando a tortura: Análise de jurisprudência nos tribunais de Justiça do Brasil”, divulgado nesta terça-feira (27), é assinado por cinco instituições: Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), Pastoral Carcerária, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Acat (Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura).

O estudo analisou os 455 acórdãos –decisões de segundo grau-- proferidos pelos tribunais de Justiça do Brasil no período de 2005 a 2010. Ao todo, foram 752 acusados nesses processos e 800 vítimas.

O levantamento revelou que o número de torturas em casa supera inclusive aquelas que ocorrem em locais de privação de liberdades, como delegacias, casas de internação e penitenciárias: 33% no primeiro caso contra 31% no segundo.

 “Ao cruzar os dados sobre o local onde ocorreu a tortura e perfil do agressor, a maioria dos casos ocorridos em residências teve como autores agentes privados, enquanto que os ocorridos em locais de contenção e via pública foram perpetrados, em sua maioria, por agentes públicos. Essas informações revelam que os casos de agentes privados tendem a ocorrer em residências, caracterizando violência em ambiente doméstico. Já os casos envolvendo agentes públicos ocorrem em locais de contenção e em via pública", diz o levantamento.

Os números mostram que o perfil da agressão não é uniforme entre todas as regiões do país. Enquanto no Norte, Nordeste e Centro-Oeste o percentual de agressões por agentes públicos supera 70%, no Sudeste e Sul não chega a 45%, onde existem ainda mais agressões a crianças, mulheres e adolescentes dentro de casa.

A análise dos casos revelou também que, referente aos processos analisados, 24 pessoas morreram, sendo que 14 delas eram suspeitos ou presos, nove crianças e uma ex-namorada.

Agentes públicos são menos punidos

Além de torturarem mais, os agentes públicos envolvidos têm mais chances de serem absolvidos no judiciário do que agentes privados. O levantamento constatou que, entre os agentes privados, 84% são condenados pelo crime de tortura. Já a condenação de agentes públicos é de 74%. As absolvições, segundo a pesquisa, normalmente ocorrem por falta de provas. 

“Identificou-se nos acórdãos uma série de questionamentos sobre as provas produzidas e sua capacidade de comprovar o crime e a tortura. É preciso expor essa falha para que as autoridades policiais trabalhem mais intensamente na colheita de provas, de forma a garantir o esclarecimento dos fatos”, conclui o estudo.

A análise das ações mostra também que a principal motivação da tortura, no caso de agente público, é “obtenção de confissão ou informação”. Já no caso dos agentes privados, ela é utilizada como forma de castigo.

Sobre os agentes públicos, o estudo faz um alerta: “torna-se urgente que o Estado brasileiro adote medidas para melhor prevenir a tortura praticada pelos agentes públicos, assim como se esforce para que, havendo o envolvimento desses atores, sejam produzidas provas suficientes para esclarecer o caso”.

Análise após lei

Desde 1997, com a Lei 9.455, o país passou a ter legislação específica para casos de tortura. O estudo aponta que o número de condenações vem crescendo ao longo dos anos, mas afirma que o Brasil ainda está atrasado em relação a outros países.

“O combate ao crime de tortura exige a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas. De um lado, são necessárias a criação e a manutenção de mecanismos que eliminem a 'oportunidade' de torturar, garantindo a transparência do sistema prisional-penitenciário. Por outro, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, demandando do Estado o rigor no dever de investigar, processar e punir os seus perpetradores”, diz a doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC=-SP (Pontifícia da Universidade Católica), Flávia Piovesan, que assina o prefácio da pesquisa.

As organizações que publicaram o documento fazem uma série de recomendações, entre elas: promover formação contínua dos juízes sobre o Tratados de Direitos Humanos, zelar pela aplicação da Lei de Proteção à Testemunha, assegurar que o condutor das vítimas de tortura para o local de perícia não tenha a mesma profissão do acusado e incentivar a criação de órgão interno da Defensoria Pública estadual e federal, especializado no combate e prevenção à tortura.