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"Se reclamar, nós não entramos", diz mãe de preso sobre revista íntima

Banco detector de metal usado em unidades penitenciárias em São Paulo - UOL
Banco detector de metal usado em unidades penitenciárias em São Paulo Imagem: UOL

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

29/01/2017 04h00

As histórias são parecidas, assim como o mal-estar que as três mulheres compartilham. Ouvidas pela reportagem do UOL, elas concordaram em dar entrevista desde que não fossem identificadas. Moram em São Paulo, na capital, e são parentes de homens presos em unidades penitenciárias do interior do Estado. Por causa dos relatos apresentados aqui, temem que eles sofram retaliações.

Na vida dessas mulheres, retratadas com nomes fictícios, ter um parente preso significa viajar várias horas de ônibus aos finais de semana para visita-los em uma cidade distante. Lá, elas esperam mais tempo na fila, bem cedo, para poder entrar no presídio e entregar a eles o que estiver em falta: palavras de conforto, notícias dos mais próximos, roupas, sabonetes, comida...

"Se eu não fizer isso, quem vai fazer?", diz uma das entrevistadas, ao explicar que é o único contato do filho com o mundo de fora.

"Se reclamar, nós não entramos"

Gastos com transporte, mantimentos que elas levam e hospedagem impedem muitas mães, mulheres, irmãs e filhas de fazerem as visitas semanalmente. O maior empecilho, no entanto, segundo as três ouvidas pela reportagem, é a "humilhação" que elas sentem ao passar pela revista íntima, o procedimento de segurança.

Aparelhos de raio-x e detectores de metal são utilizados em todas as 166 unidades prisionais sob comando da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária). Mas as mulheres dizem que são obrigadas a tirar a roupa toda vez, a fazer agachamentos e a expor a genitália.

"Eu me sinto constrangida. Você fica pelada na frente de uma pessoa que você nem conhece. Chega lá, tem que ficar se arreganhando, mas tem que fazer isso...", afirma "Paula", comerciante de 42 anos.

O marido dela cumpre pena há cinco anos por roubo. Neste período inteiro, só uma única vez "Paula" não precisou se despir e fazer agachamentos diante de funcionárias do presídio.

"A gente entra, tira toda a roupa, se abaixa [agachada] três vezes de frente e de costas, passa pelada pelo detector de metal. Aí vai pro banquinho [detector de metal], se senta sem roupa, para identificar se você tem metal no corpo", ela conta. "Eu nunca reclamei, porque se reclamar, nós não entramos. Fica um mês, 15 dias sem fazer a visita."

"Minha filha não quer mais vir"

A cena que ela descreve é definida como "revista íntima" na lei estadual 15.552, que proíbe esta prática desde agosto de 2014 nas unidades prisionais de São Paulo.

Para entrar nos presídios, os visitantes (mulheres, na grande maioria) são cadastrados pelo governo do Estado e devem passar por verificações que mantenham a segurança interna.

Somente para as 166 unidades prisionais administradas pela SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) estão cadastrados 927.296 visitantes.

De acordo com uma investigação do Ministério Público e do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública, apesar de proibida, a revista íntima – chamada de "revista vexatória" por promotores e defensores públicos em documentos públicos sobre o tema, como os que a reportagem teve acesso – ainda é mantida nos presídios do Estado.

A SAP informou, sem citar o termo "íntima" (como está na lei), que "a revista em visitantes de presos é rigorosa, no entanto, não é constrangedora nem vexatória".
Conforme mensagem enviada à reportagem do UOL, a secretaria afirma que "o rigor na revista se faz necessário, com o objetivo de evitar a entrada de drogas e celulares nas prisões, ocultados em seus próprios corpos (partes íntimas)”.

A comerciante "Paula" viaja até nove horas de ônibus para visitar o marido e nunca foi barrada durante as revistas íntimas nem nos aparelhos de detecção de metal.

"Tem que tirar toda a roupa. Levei minha filha de 14 anos, ela não quer ir mais por causa disso. Porque tem que tirar a roupa, fazer a mesma coisa que eu faço", ela afirma.

O marido de "Paula" e pai da adolescente pediu que a garota não participasse mais das visitas. "Pra passar pela mesma humilhação que você?", ele falou à mulher. "Então, é melhor não trazer mais ela."

"O que mais tem na fila é a terceira idade"

Assim como "Paula", a auxiliar de limpeza "Cláudia", de 57 anos, nunca foi impedida, após ser revistada, de entrar no presídio onde o filho cumpria pena por tráfico de drogas.

Detido em 2012, antes da proibição da revista íntima, ele cumpre a pena em regime aberto desde dezembro de 2015.

"Cláudia" fez visitas tanto em períodos anteriores como posteriores à sanção da lei pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) e diz que nada mudou. A exceção ocorreu no primeiro fim de semana após a publicação no "Diário Oficial", em agosto de 2014, quando todos os visitantes foram poupados de tirarem as roupas.

"Foi muito rápido, passei pelos mesmos equipamentos de sempre, mas não tirei a roupa. A gente chega no parente mais rápido. Os próprios funcionários veem a gente diferente", ela afirma.

A lei 15.552 diz que os visitantes devem passar por revistas mecânicas e dá exemplos de equipamentos que podem ser utilizados nos presídios: scanners corporais (que fazem varredura detalhada em imagens), detectores de metais, aparelhos de raio-X, e outras tecnologias que preservem a integridade física, psicológica e moral do visitante revistado.

Se houver suspeita de que o visitante leva algo proibido, nova revista deve ser feita, de preferência com um equipamento diferente, mas é proibido "todo procedimento que obrigue o visitante a despir-se, fazer agachamentos ou dar saltos, e submeter-se a exames clínicos invasivos".

Depois daquele fim de semana de exceção, tudo voltou ao 'normal', com desnudamentos e sequências de agachamentos de frente e de costas, conta a auxiliar de limpeza.

"O que mais tem na fila é a terceira idade. Imagina uma senhora de 70 anos chegar naquela fila e tirar a roupa na frente daquelas pessoas que ela nunca viu? É humilhante", diz "Cláudia" sobre o que via ao seu redor antes de estar com o filho.

"Eles punem a família também"

O caso da educadora social "Flávia", de 54 anos, ficou mais complicado quando ela sofreu um acidente dentro de casa e precisou colocar um pino de metal no joelho.

São nove horas de viagem para ver o filho e apenas duas horas de visita. Por conta do objeto de metal dentro de seu corpo, os detectores do presídio apitam quando ela passa pelos equipamentos.

É por isso que seu documento de visitante indica "parlatório", ou seja, ela não pode ter acesso à área de convivência dos presos. Sem contato físico com o filho, eles se comunicam por meio de uma janela de vidro. E mesmo assim, ela é obrigada a tirar a roupa.

"A revista é a mesma coisa, tenho que tirar a roupa. Mesmo com a questão do joelho, eu tenho que agachar, aí eu falo da minha dificuldade de agachar, mas não respeitam. E não é uma agachadinha: são três vezes de frente e três vezes de costas. Eu já até passei por penitenciária que eu tinha que por a mão na parede e ir descendo pra frente, com o quadril pra frente e as partes íntimas expostas", ela relata.

Somando as despesas com viagem, roupas, alimentos e produtos de higiene que ela entrega ao filho, "Flávia" chegava a gastar R$ 1.200,00 por mês. Como o tempo permitido no parlatório é menor do que a visita padrão, ela foi desanimando. Passou a enviar os produtos pelo correio e, para economizar, cortou as idas ao interior do Estado. Faz oito meses que não vê o filho, que cumpre pena por tráfico de drogas há cinco anos e sete meses.

"Eles punem a família também, como se a família fosse criminosa, como se a mãe fosse bandida. A gente sente muita saudade. Vai se tornando praticamente um desconhecido, você não sabe mais nada dele [do filho]."

Medo de represália

A associação Amparar, que reúne parentes e amigos de presos, recebe com frequência queixas sobre o descumprimento da lei que proíbe a revista íntima. A fundadora da associação, Raílda Alves, diz que existe medo de denunciar, por parte das famílias dos presos.

Raílda Alves, fundadora da associação Amparar - Gabriela Fujita/UOL - Gabriela Fujita/UOL
Raílda Alves, da associação Amparar
Imagem: Gabriela Fujita/UOL

De acordo com ela, causa apreensão a possibilidade de represálias aos internos quando o problema relacionado às revistas é levado às entidades públicas de fiscalização.

"A gente começou a denunciar coletivamente. A gente não expõe a família. Enquanto o Brasil continuar violando os direitos dos nossos filhos, maridos e irmãos, nós vamos denunciar. Quanto mais você se cala, é pior", ela afirma.

A associação foi criada em 2004, na zona leste da capital paulista, para denunciar maus tratos no sistema penitenciário. Já atendeu cerca de 5.000 pessoas e oferece atendimento, por meio de voluntários, de psicologia, psiquiatria e assistência social.

Para o ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), organização sem fins lucrativos que também recebe reclamações sobre o descumprimento da lei, o Estado de São Paulo tem condições de abolir a revista íntima, pois as unidades prisionais possuem equipamentos suficientes.

A advogada Raquel da Cruz Lima, do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) - Gabriela Fujita/UOL - Gabriela Fujita/UOL
A advogada Raquel da Cruz Lima, do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania)
Imagem: Gabriela Fujita/UOL

"De forma geral, o Estado de São Paulo é muito bem equipado e tem em profusão equipamentos relacionados à detecção de metal. O que coloca em risco a segurança é arma. Ainda que drogas sejam proibidas, elas não colocam em risco a segurança de uma pessoa, como uma arma colocaria em risco”, defende a advogada Raquel da Cruz Lima, coordenadora na ONG do programa Justiça sem Muros, ligado ao ITTC. 

O trabalho do ITTC tem foco, entre outros, na garantia de direitos humanos e na promoção do desencarceramento.

A advogada avalia que, ao desincentivar os parentes a visitarem os presos, o Estado dificulta o contato da sociedade com a realidade carcerária.

"Quando os familiares visitam as pessoas que estão presas, o que eles estão fazendo é garantir a manutenção dos vínculos familiares. Garantindo que quando as pessoas saiam das unidades elas tenham para onde ir", diz ela.

"Se o Estado coloca a revista vexatória, ele estimula o rompimento dos vínculos e coloca as pessoas numa posição muito vulnerável. E ao saírem da prisão terem que ir para a rua. O que os visitantes fazem é fundamental para o próprio Estado porque também ajuda a garantir um ambiente mais tranquilo, mais pacífico, as pessoas se sentem muito melhor depois que encontram suas famílias."

Decisões judiciais pelo cumprimento da lei

Pelo menos em duas regiões do Estado de São Paulo a Justiça já autorizou visitantes a ingressarem em presídios sem passar pelo procedimento de tirar a roupa e agachar repetidas vezes.

Em Tupi Paulista (680 km da capital), uma mulher, parente de um preso, denunciou humilhações à Defensoria Pública e conseguiu autorização da Corregedoria-Geral da Justiça para fazer a visita sem passar por revista íntima, em outubro de 2016.

Na região de Rio Claro (190 km da capital), a Defensoria Pública conseguiu cinco mandados de segurança individuais, no primeiro semestre de 2015, para que parentes de presos fossem liberados da revista íntima.

Em junho de 2015, a Justiça concordou com uma ação civil pública movida pela defensoria e liberou da revista íntima todos os visitantes das Penitenciárias 1 e 2 de Itirapina.